29.6.05

A PÓS MODERNIDADE NOS MUNDIAIS DE FUTEBOL
tomo 3 – USA 94

Por Augusto Fair Enough


O grevista: a pior mascote de sempre.

1 - INTR8
O simples facto de um mundial de futebol se realizar num país chamado Estados Unidos da América seria suficiente para encerrar o debate sobre a pós modernidade neste mesmo mundial, decorrido entre 17 de Junho e 17 de Julho de 1994. Acaso já imaginou, caro leitor, um campeonato mundial de basebol ser jogado em Silves, Setúbal, Sines e Sintra, isto para apenas citar cidades começadas com “S”? Acaso já imaginou a presença de uma comitiva lusa num campeonato de bobsleigh? Eram cogitações desta estirpe que cruzavam a mioleira deste escriba,no verão do quarto ano da década de noventa. “Algo vai no reino do futebol, qualquer dia a Grécia ainda ganha um campeonato da Europa”, pensava eu – e bem - naqueles idos.
O mundial em si foi, sem dúvida, um desfiar de individualidades. As equipas ficaram relegadas para as infraestruturas marxistas. Alguém se lembra quem ganhou este mundial? Sinceramente, só a muito custo me apercebo que foi, efectivamente, o Brasil.





O Jéquin de Setubal e o Michel de Benfica mais o Baggio do Tibete: individualidades em destaque na pós modernidade do USA 94.

2-UM MUNDIAL DE FIGURAS
O USA 94, mascoteado por um abjecto canídeo apodado de Striker (grevista, em tradução literal) foi, como se referiu, um mundial de figuras: em segundo plano ficam os grandes jogos da Argentina contra a Roménia (com o suspenso Maradona a berrar, da bancada, “hijos de puta, hijos de puta” no momento imediatamente a seguir a um golo da sua Argentina), o Itália – Bulgária e o Brasil-Holanda. Antes nos detemos no perfume de Magi Hagi (o Maradona dos Cárpatos) e nos petardos de Dumitrescu, deleitamo-nos com o golo e a raiva do efedrinado Maradona das Pampas, rendemo-nos ao rock and roll de Alexi Lalas, carpimos a morte de Andres Escobar, orgulhamo-nos por Salenko ter quebrado o record de Eusébio e de Roger Milla se ter tornado, aos 42 anos (e todos sabemos que levou o filho mais novo com ele quando se foi registar), no mais velho marcador de golos num mundial.
A pós modernidade figurativa, neste mundial de caras, pertence, por inteiro, a três figuras:

a) Michel Georges Jean Ghislain Preud’Homme
Aos trinta e cinco anos foi eleito o melhor guarda-redes do campeonato. Cada defesa sua fazia as delícias de qualquer amante da fotografia e do bailado, da dinâmica do movimento e da metafísica dos costumes. Arte e artista nas balizas: quem não se lembra da quantidade industrial – logo, pós moderna – de defesas impossíveis que realizou no jogo contra a Alemanha? Se não tivesse já escrito isto, diria que quem tinha um pacto com o diabo era mesmo este belga. Mais pós moderno do que a fotogenia das suas exibições, só mesmo a boca aberta da nação benfiquista, uma vez que já tinha contrato assinado com os da Luz. Provavelmente, e a par de Clóvis, foi o único tiro certeiro de Artur Jorge, salvo aqueles que deu no seu próprio pé. Gabriel Alves chamava-lhe mesmo “Próidome”.

b) Rashid Yekini
“Vai Jéquin!”, gritavam entusiasmados os sadinos de bigode e tez morena, agarrados às grades do Bonfim, quando o portento africano pegava na bola e levava, em falta ou em drible, tudo à sua frente. É graças a este nigeriano natural de Kaduna, que Setúbal se colocou no mapa do futebol mundial. A comemoração pós moderna do seu golo contra a Bulgária de Letchkov, agarrado às redes da baliza, em homenagem aos adeptos setubalenses, tinha o perfume da escola artística sadina: cheirava a Bocage, a Luisa Todi, a Fernando Luís, a Toy... cheirava a Sado.

c) Roberto Baggio
Depois da arte consubstanciada no golo contra a Checoslováquia –que, se calhar, tmabém poderá ter estado na origem do desmembramento desta enquanto país – il Divino Codino chegava às Américas disposto a deixar em campo a baba brilhante do seu futebol caracoleante (esta frase é candidata à melhor metáfora da blogosfera lusofalante). E assim o fez, ao longo de vários jogos, de várias fintas, de vários momentos de futebol filigrânico (contra a Bulgária, por exemplo). Mas a sorte é madrasta e igualmente pós moderna: tinha tudo para ser feliz, mas falhou o penalty decisivo contra o Brasil e foi achincalhado no aeroporto de Fiumiccino. Mas a “vendetta é un piatto che si serve freddo” e Baggio, algum tempo depois, rendeu-se ao budismo.





O sorriso de Owairan, o vai buscá-la Atmatzidis e o rocanróle americano.

3 - A POUCA PÓS MODERNIDADE DOS COLECTIVOS
No que diz respeito às equipas propriamente ditas, e ressalvando o melhor dos futebóis praticado pela Roménia, são de destacar, sob o prisma pós moderno, as prestações da:

a) Arábia Saudita
Jamais esqueceremos o futebol sorridente dos discípulos do argentino Jorge Solari, que encantou o mundo com triunfos retumbantes sobre a Bélgica e Marrocos. Jamais esqueceremos a pós modernidade do sorriso de Saeed Owairan, gazelante avançado do colosso Al-Shabab. Este mundial jamais teria sido o que foi sem a presença desta selecção.

b) Grécia
Três jogos, três derrotas, zero golos marcados, dez sofridos. Assim se contabiliza o saldo dos comandados de Alketas Panagulias, um obscuro grego de sessenta anos com uma visão incompreendida do futebol. Hélas. Acima de tudo, a Grécia mostrava coerência dentro do campo, coerência essa miraculosamente quebrada em Lisboa, numa fria tarde de Julho de 2004. Para mais tarde recordar, aqui fica o mítico onze que encaixou quatro secas da Bulgária: na baliza, Ilias Atmatzidis, defesa composta por Stratos Apostolakis, Ioannis Kalitzakis, Vaios Karagiannis, Kiriakos Karataidis, Nikos Nioplias, Spiros Marangos Minas Hantzidis, Savvas Kofidis, meio campo com Nikos Machlas e lá na frente, Alexis Alexoudis. Foram, em bom rigor, a única equipa pós moderna deste mundial.

c)Estados Unidos da América
Quem diria que iriam chegar aos oitavos de final, perecendo ante o campeão? Treinados pelo cidadão do mundo Bora Milutinovic (que aparece sempre e incompreensivelmente a treinar uma selecção em fases finais do campeonato do mundo), os americanos tinham grandes baluartes da pós modernidade no seu plantel: o mítico Tony Meola (foi tão falado para o Benfica que deve ter dado o toque ao seu amigo Zach Thornton para vir para a Luz), o rocker Alexi Lalas, o WASP Joe-Max Moore, o italianado Paul Caligiuri, o registra Tab Ramos, a promessa Cobi Jones, o boxer Marcelo “Son of Rocky” Balboa e o grande adepto e connaisseur de futebol, Al Gore. Só não foram campeões porque a FIFA não deixou.



Good Evening Pasadenaaaaaaaaaaaaaa

4 - O EPICENTRO DE PÓS MODERNIDADE DO USA 94
Contudo, os dois grandes pós fenómenos deste mundial devem-se a um português e foram apenas e só sentidos no mundo lusófono, no dia 17 de Julho de 1994: aquando da transmissão da final, que opôs o Brasil de Dunga à Itália de Massaro, os comentários ficaram a cargo de um colosso de rodes da filosofia sistémica pós moderna, um venerável homem, um génio capaz de transformar um Forjães – Mamarrosa de fim de época numa excitante final da liga dos campeões: o Professor Doutor Gabriel Alves. E tais fenómenos dão-se no início da transmissão quando o Professor nos situa no espaço com um imperial “benvindos ao estádio de Rosebowl, Pasadena, grande Los Angeles” (fazendo relembrar o imortal "Good evening, Pasadena" gritado pelo vocalista dos Depeche Mode, seis anos antes) e, um pouco depois, se refere às condições climatéricas anunciando uma “humidade relativa muito superior a 100%”, questionando a própria relatividade da humidade, bem como a escala de valores pela qual, até então, esta se regia. O mundial pós modernista estava, definitivamente, ganho.

27.6.05

Nota da Direcção
Vem aí a grande gala do segundo aniversário do Futeblog-Total. Surpresas, pós modernidades colossais, monografias, grande jantarada em Montalegre, concentração de Lyotardianos Motards, vai estar cá tudo a partir de dia 3 de Julho. Por isso, caro leitor, prepare-se para uma intensidade pós moderna nunca dantes vista. Até breve. Para si, em especial, uma semana cheia de Jaimemagalhães, sempre ao som do piano do quase Lennon português.

MINUDÊNCIAS DO FIM DE SEMANA
Uma crónica pungente de Quarlos Eirós.




Dimas e Bento são parezinhos enquanto que Oliveira Pinto e Alves são cambão.

Ao contrário de muitos ex amigos meus, no dia vinte e quatro de Junho não sou menino venerando do insigne S. João. Antes me dirijo, por via de regra, à pacata cidade de Guimarães, onde presto homenagem ao ilustre vimaranense Afonso Henriques, colocando uma orquídea selvagem aos pés da portentosa estátua de Soares dos Reis, sita perto do Castelo e do Paço Ducal de inspiração salazarista. É que neste mesmo dia, no ano de 1128, o supracitado monarca venceu senhora sua mãe, D. Teresa, na monumental batalha de S. Mamede, originando um dos maiores erros históricos de que tenho memória: a desmembração de um estado luso-galaico, da Corunha ao Al-Garbh. Podia ter sido bonito, mas não foi. Podia, tal batalha, originar um sketch supino, se a cotejássemos a um jogo de futebol, mas isso fica para outra altura.
Encontrava-me eu a deglutir um magnânime bucho, no restaurante Florêncio, quando me ocorreram duas ideias conceptuais sumárias, entre duas garfadas e um penalty num copo de mistura de dois por três tintos:

Os Parezinhos e o Cambão.
Grassa na pós modernidade do futebol português uma manifestação de dualidade extremamente gratificante e apodada por alguma doutrina de “os parezinhos”: jogadores que não se transferem sozinhos (será a clássica borra?), antes se acompanham nos momentos mais significativos (ou em grande parte) das suas carreiras. Exemplos? Dimas e Paulo Bento: da Amadora para Guimarães, de Guimarães para o Benfica, do Benfica para algum lado em separado (de notar que a ida de Dimas para a Juventus merecia não um post, mas um blog inteiro), e de algum lado em separado para o Sporting. Mais casos existem: os Pedros – Martins e Barbosa – de Guimarães para Alvalade, Nelo e Tavares, do Bessa para a Luz, Paredão e Marcelo, de Santo Tirso para Benfica, entre muitos outros. O denominador comum é a chamada "parelha", indiciante do "pague um, leve dois" ou do "este, sózinho, não sai: para o levarem, façam o favor de levar este também". De notar que a terminologia pós moderna de “os parezinhos” não colide, nem de longe nem de perto, com a categorização modernista de “o cambão / a côngrua”: fenómeno tipo arrastão de praia que faz com que um treinador, a troco sabe-se-lá de quê (v.g. a côngrua), arraste para o clube para onde vai, alguns jogadores. É caso para dizer que quando há cambão, por regra há também côngrua. Apesar de ser um fenómeno maioritariamente palpável nos escalões inferiores, exemplos primodivisionários não faltam, destacando-se, gritante e aleatoriamente, os de João Alves e Marinescu (Farense, Salamanca e Académica), João Alves e João Oliveira Pinto (Guimarães, Farense e Académica), e os de João Alves e Raul Oliveira (Farense e Académica). De notar que os jogadores abrangidos pelo cambão raramente singram, ao contrário dos parezinhos.

26.6.05


Adeus, Hugo Cunha.

25.6.05

ESTRANHAS COINCIDÊNCIAS
Por Augusto Justo, Mefistófeles de Celorico.


Aqui há cerca de um mês, visitei a lombar cidade de Setúbal, para efeitos de proferir, na EB dois três de Aranguez, uma pequena palestra para a pequenada, subordinada ao tema “O Estruturalismo no Vitória de Setúbal dos anos 80: Errâncias e Sindicâncias”. Não contive a comoção quando proferi o nome do lendário Aparíco e fui surpreendido com uma belíssima salva de palmas de dois minutos por parte da pequenada. Quem sabe nunca esquece, pensei, enquanto os incitava à leitura de Prado Coelho, Jorge Valdano e Louis Althusser. Após esta conferência, onde até distribui um par de autógrafos e um par de galhetas a um miúdo da Bela Vista que me tentou roubar um livro de Kierkegaard, deambulei pela cidade, bebi um Moscatel no Novoreno, comi Choco Frrito (carregar no erre, como qualquer bom sadino) no Léo e deitei-me de barriga cheia. É então que, já no meu sétimo sono, como tocado pela providência divina, começo a sonhar com um verso de Fausto (Quadro 2, Cena 1), obra do imortal libero alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), numa tradução de Feliciano de Castilho:

Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.


Reconstruí, oniricamente, a sinopse da obra e, qual não é o meu espanto quando, palavra após palavra, me aparecia o retrato de um ilustre sadino: José Mourinho, um mestre em artes (facto inegável) com um bando de crendeiros a gravitar em seu torno (os treinadores da nova vaga que se dizem seus amigos/inspirados/seguidores).
Facilmente concluí que estava a ter um pesadelo metafísico, talvez mesmo uma revelação qualquer. Minutos depois, e ainda no mesmo sonho vislumbrava o filme Faust - Eine deutsche Volkssage que F. W. Murnau filmou em 1926. Em pânico fiquei com a minha descoberta, sobretudo quando me aparece um de fotograma do referido filme: pelos vistos, desatei a berrar “vejam-se as semelhanças do actor Gösta Ekman e o treinador preferido de Abramovitch".



Inquestionável a semelhança entre Gösta Ekman (Fausto, aqui abraçado por Belzebu) e Zé Mourinho.

É então que sou acordado pela minha Idalécia, que me diz “Justo, ou te calas ou vais dormir para a sala”. Levantei-me e bebi um copo de Moscatel, acompanhado de um Mata Ratos que houvera roubado a um miúdo da escola onde estivera a palestrar nessa tarde.
Quando voltei a cair nos braços de Morfeu (ehehe, ganda perífrase), ainda de bafo quente, sou assolado pela segunda parte do sonho: livro e filme uniam-se num só e Luís Pereira de Sousa, vestido com o equipamento do Salgueiros, segredava-me ”o treinador campeão inglês tem um pacto com o diabo”, antes de me levar para a sala de imprensa das Antas, onde Mourinho discursava, dizendo “este ano não vamos ser campeões, mas para o ano de certeza que vamos ser campeões”. Sonhava de mim para comigo como é que Mourinho tinha tanta certeza disso. Quem – senão uma força oculta – lhe poderia garantir tal façanha? Rememorava o “alguém vai ter de pagar”, dito depois de uma anormal derrota na Supertaça europeia e as quatro balas com que brindou não o Trofense, mas sim o Sporting no domingo seguinte. Ele já sabia o que ia acontecer, sem sombra de dúvida. Relembrei ainda o “lá para finais de Abril celebramos a conquista da Premiership”, dito em Janeiro, num inglês com sotaque do Sado e o que se passou no dia 1 de Maio deste ano, no estádio dos Bolton Wanderers. Como diria a minha discípula Margarida R. Pinto, "Justo, não há coincidências": só uma força sobrenatural poderia estar por trás disto. E mais cri no que sonhava quando vejo Silvino Louro (setubalense, note-se), de livro aberto na cena 5 do Quadro 2 a dizer “ E Fausto disse então:

A quem já buscarei para instruir-me?
e de que hei-de temer-me?
É bem que eu ceda
ao meu impulso actual, ou que o resista?


Era a voz de Mourinho a falar na minha alma, por intermédio de Silvino Louro. O “de que hei-de temer-me” ecoava vezes sem conta e uma visão psicadélica do retrato de Alex Fergusson ou mesmo de Anders Frisk apareceu no meu sonho.
De repente, vejo Adrian Mutu a celebrar um golo e depois a chorar convulsivamente enquanto Mourinho, vestido à Fausto, lhe dizia ao ouvido:

Sou o espírito
que estorva sempre. E com razão, pois tudo
quanto nasceu merece aniquilado;


Acordei encharcado em suor e a minha Idalécia mandou-me logo ir tomar um banho frio e malhar oito valdisperts em jejum. Ainda hoje creio piamente no que sonhei.

20.6.05

FUTEBOL POÉTICO
É com desmedido orgulho que publicamos três belíssimos textos de um grande vulto das letras sul americanas: o uruguaio Eduardo Galeano, que nutre pela bola um fascínio poético idêntico ao fascínio pós modernista que por ela também sentimos. A tradução ficou a cargo, como é óbvio, de Augusto "Burruchaga" Justo.


Professor Doutor por extenso Eduardo Galeano: um Enzo Francescoli das palavras.

O FUTEBOL
A história do futebol é uma triste viagem do prazer até ao dever. À medida que o desporto se tornou numa indústria, desterrou a beleza que nasce da alegria de jogar por si só.
Neste mundo de fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil e é inútil o que não é rentável. Ninguém lucra com essa loucura que faz com que o homem volte a ser menino por um instante, jogando como joga a criança com um balão, como o gato com um novelo de lã: bailarino que dança com a bola, leve como um balão que sobe no ar e leve como o novelo que rodopia, a jogar sem saber que joga, sem motivo, sem relógio, sem árbitro.
O jogo converteu-se num espectáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores -futebol para assistir - e o espectáculo converteu-se num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para se jogar, mas sim para impedir que se jogue. A tecnocracia do desporto profissional impôs um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia.
Por sorte, nalguns campos, de vez em quando ainda aparece algum descarado de cara suja que sai do guião e comete o disparate de fintar toda a equipa adversária, e o árbitro, e o público das tribunas, pelo puro gozo do corpo que se lança à proibida aventura da liberdade.

O GOLO
O golo é o orgasmo do futebol. Tal como o orgasmo, o golo é cada vez menos frequente na vida moderna.
Há meio século, era raro um desafio acabar sem golos. Zero a zero, duas bocas abertas, dois bocejos. Agora, os onze jogadores passam o jogo inteiro colados ao travesseiro, dedicados a evitar os golos e sem tempo para os marcar.
O entusiasmo que se solta cada vez que a bola branca sacode a rede pode parecer mistério ou loucura, mas a verdade é que o milagre acontece poucas vezes. O golo, ainda que seja um golinho, resulta sempre em gooooooooooooooooooooooolo na garganta dos locutores de rádio, um dó de peito capaz de deixar Caruso mudo para sempre, e a multidão delira e o estádio esquece-se que é de cimento e desprende-se da terra e sobe no ar.

O ADEPTO
Uma vez por semana, o adepto foge da sua casa e acorre ao estádio.
Flamejam as bandeiras, soam as cornetas, os foguetes, os tambores, chovem as serpentes de papel; a cidade desaparece, a rotina esquece-se, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus mostra as suas divindades. Embora o adepto possa contemplar o milagre, mais comodamente, no ecrã de televisão, prefere empreender a peregrinação a este lugar onde pode ver os seus anjos em carne e osso, lutando contra demónios de turno.
Aqui, o adepto agita o cachecol, engole saliva, glup, engole veneno, come o boné, sussurra palavrões e maldições e rapidamente rasga a garganta numa ovação e salta como uma pulga, abraçando o desconhecido que grita golo ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o adepto é muitos ao mesmo tempo. Com milhares de devotos, partilha a certeza que somos os melhores, todos os árbitros estão vendidos, todos os rivais são enganadores.
Rara é a vez que o adepto diz: “hoje joga o meu clube”. Antes diz: “hoje jogamos nós”. Bem sabe este jogador número doze que é quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, como bem sabem os outros onze jogadores que jogar sem adeptos é como bailar sem música.
Quando o desafio acaba, o adepto, que não se mexeu da bancada, celebra a sua vitória: que goleada lhes espetamos, que coça lhes demos, ou chora a sua derrota: lixaram-nos outra vez, árbitro ladrão. E então o sol desaparece e o adepto desaparece. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nas bancadas de cimento ardem, aqui e acolá, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto se apagam luzes e vozes. O estádio fica sozinho e também o adepto regressa à sua solidão, um eu que fora um nós: o adepto afasta-se, dispersa-se, perde-se, e o domingo é melancólico como uma quarta-feira de cinzas depois da morte do Carnaval.

Eduardo Galeano, in El Fútbol a Sol y Sombra, Catálogos Editora, Buenos Aires, 1995.

19.6.05


NOUVELLE VAGUE - UM COMUNICADO DA DIRECÇÃO
Caros Leitores:
Sempre fomos adeptos da evolução na continuidade. Por isso, em vez fazermos pequenos ajustes ao desenho do blog, decidimos mudar tudo de uma só vez. Inclusivamente, mudamos o Aurárcio Mélio pelo José Meirinho, no vasto leque de investigadores deste projecto. Aproxima-se o assinalar do segundo aniversário desta ágora e, com ele, uma série de comemorações. Este novo vestuário do blog é, por conseguinte, o primeiro passo comemorativo. Apresentamos, assim, o Futeblog Total 2005/2006: novas vestes, novos colaboradores, a pós modernidade de sempre.
Um revigorante bem haja,
Augusto Justo,
Presidente Vitalício da Fundação Futeblog Total

18.6.05

A PÓS MODERNIDADE NOS MUNDIAIS DE FUTEBOL
tomo 2 – MÉXICO OCHENTA Y SEIS
por Quarlos “Panchito” Eirós, com a ajuda de Orlando Dias Agudo e Gabriel Alves (ambos sempre entre aspas) e com recurso ao precioso acervo fotgráfico do Planet World Cup



México ochenta y seis, México ochenta y seis, el mundo unido por un balón.

1 - INTRÓITO
Que dizer do melhor mundial de futebol de todos os tempos? No entender da escola cínica grega, podia começar por referir que o odiei. Mas não. A honestidade intelectual sempre foi um dos meus pontos fortes, desde a pré primária em Quimbres, Portugal.
Que dizer do melhor mundial de futebol de todos os tempos, então? A tarde de 31 de Maio de 1986 estava morna, e nem o discurso de inauguração do presidente Miguel de la Madrid pareceu aquecer italianos e búlgaros, que empataram a um. Assim começava o México 86, mascoteado pelo Pique, encantado por um hino monumental, cuja letra andava à volta disto: “el pique ha comenzado / en juego está el balón / latir de corazones / al ver que se ha anotado el primer goooool / el gol es la alegria del mundial ochenta y seis / confiança en el deporte eso es mi México / México (…)".



Manuel Bento em Pop Art Warholiana e a expressiva borra de Frederico Rosa no jogo contra a Inglaterra

2 – A PÓS MODERNIDADE TRAUMÁTICA PORTUGUESA
Alcácer Quibir, Goa, Borda do Campo, Guimarães e Saltillo. Aparentemente, localidades sem nada em comum. Aprofundadamente, todas elas têm a marca da humilhação lusitana. Lugares de perda, lugares de trauma psicossociológico. A participação portuguesa no mundial de 86 começa precisamente num desses lugares: Saltillo, mais concretamente em Coahuila, no Motel La Torre. José Torres chegava ao México com o “deixem-me sonhar” carimbado no passaporte da esperança, e com ele uma equipa mítica, cheia de bigodes e vontade de ganhar… mais prémios de jogo. Aqui se iniciava a participação pós moderna portuguesa, com uma vincada desilusão em relação aos ideais da modernidade (estágios bem programados, jogos treino, prémios acertados). Seguiu-se a a adaptação à altitude, a greve e a conferência de imprensa, o desnorte do treinador, a ira de Silva Resende e a intervenção de Manel Alegre na Assembleia da República. Por fim, veio o futebol, com um patético jogo treino contra uma equipa da terceira divisão distrital de Monterrey e o primeiro jogo contra a Inglaterra, onde Portugal entrou em campo com uma borra memorável. Contudo, “Carlos Manuel repetia Estugarda” e incendiava o sonho português, fosse ele qual fosse, com uma vitória por um a zero without knowing how to read or write. Mas o azar estava escritono fado lusitano. Num jogo treino, Manuel Galrinho Bento fractura o perónio, depois de uma entrada mais ríspida de José António, O guarda redes é substituido por Vítor Damas, deixando o belenense Jorge Martins cheio de orgulho por ter sido suplente numa fase final de um mundial. Segundo jogo, primeira derrota. O adversário, naquela tarde de sete de Junho, foi a Polónia de Pawlák, Zmuda e Smolarek, que marcou o golo da vitória. No jogo contra Marrocos, a turma dos Infantes “acreditava em tudo menos que Marrocos marcasse. E a verdade é que os marroquinos marcaram três golos. Cada um ao seu estilo, cada um ao seu jeito”, sendo de sublinhar o petardo de Abdelkrim Krimau que selou o triunfo por três a um. Diamantino, agora Diamantino Miranda, ainda reduziu com um golo de antologia, à meia volta. Tarde demais: estava aberta mais uma página negra no nosso futebol, com a debandada pós Saltillo. A participação portuguesa no mundial do México 86 fez escola. Veja-se o que sucedeu em 2002 (estágios, meninas, dentes de alho, beach boys, prémios de jogo e participação vergonhosa) e cogite-se onde está a base, a origem, de tudo isto. A resposta é simples: no Motel La Torre Torre, sito à Carretera 57 Km, 869, Saltillo e com telefone nº 0052-844-430-0600.



Perfume of the stars: Hugo Sanchez cambalhoteia, imitando o então júnior Fernando Couto, Maradona impotente perante a fúria Coreana e Deus, empurrando para a baliza de Peter Shilton.

3 – UM MUNDIAL ILUMINISTA
O mundial em si foi uma pleíade de revelações, de brilhos e de luzes: comovo-me ao recordar o futebol marcial e os petardos da Coreia do Sul, com Cha Bum Kum em grande nível, a provar que “o futebol, naquelas paragens, também já nasceu”, bem como não escondo a veneração às equipas sensação que foram Marrocos, de Zaki “já muito pretendido em Espanha” e o próprio México, de Pablo Larios “por muitos considerado o melhor”, Raul Cervin e Hugo Sanchez (sem esquecer Manuel Negrete, cujo golaço contra a Bulgária de Mladenov lhe valeria um contrato de férias no Sporting). Mas falar neste mundial sem mencionar a Hungria de Lajos Detari e dos irmãos Laszlo e Peter Diszlt ou sem rememorar as míticas selecções da Irlanda do Norte, de Pat Jennings e Billy Hamilton, e do Iraque, de Raad Hammoudi e Ali Hussein Chebab seria a mesma coisa que ir aos Uffizzi e deixar escapar o Trittico Portinari de Hugo van der Goes. Outros momentos em destaque são de assinalar, para além das peripatéticas deambulações de Maradona contra a Inglaterra e Bélgica: relembremos o URSS 3, Bélgica 4, o Brasil- França que “mais parecia ser jogado por deuses que por homens, mas os deuses não erram e o homem falha” (e por isso Zico entregou o ouro a uma França que acreditava “até à morte da jogada”), relembremos Valdano a "perguntar a Tony Schummacher para onde quer a bola", na final no estádio Azteca 2000, e os estoiros de Josimar. Finalizemos esta rememoração iluminada com a menção à “digna marca” de Preben Elkjaer Larssen, que pereceu aos pés da Espanha de Butragueño, um “abutre faminto de golos” numa tarde em que os marcou em número de quatro.



Grandes Canadianos: David Norman comido por Oleg Blokhin (à direita vislumbra-se o braço de Randy Samuel) e mais dois cromos: Pakos,o playmaker e Garraway, habitualmente suplente por causa do bigode.

4 – O SÍMBOLO DA PÓS MODERNIDADE NO MUNDIAL DE 86
Perguntará o leitor paciente onde pára a pós modernidade neste mundial. Será que a houve? Onde posso encontrá-la? Nas defesas de Dasaev e Jean Marie Pfaff? Nos carrinhos assassinos de Maxime Bossis e Thomas Berthold? Na Escócia de Jimmy Leighton, Steve Archibald e Gordon Strachan? Na continuidade dos roubos de igreja que atacavam sempre a selecção da URSS? Na introdução da “maca milagreira”? Nos “pezinhos de lã” com que a RFA chegou à final? Não, caro leitor, em nenhum desses epifenómenos. Por ter sido um mundial supinamente bom, por ter tido um nível intelectual deleitante para todos os sistematizadores da filosofia do futebol, (há mesmo quem considere este mundial como o último da Modernidade), pelo facto da selecção do Brasil (ainda comandada por Telé Santana) apresentar um futebol-arte próximo do que patenteou em 82, a pós modernidade encontrava-se, no quente verão de um nove oito seis, numa fase muito embrionária. Contudo, fenómenos pós modernos começavam a despontar. Podemos identificar, para além da participação portuguesa, um outro fenómeno desta natureza. Mais forte, mais intenso, mais definido: a participação da selecção do Canadá.

A selecção canadiana conquistou o passaporte para o México depois de cilindrar as Honduras e a Costa Rica num disputado grupo de apuramento. Com uma equipa multinacional (percursora da França de 1998) que contava com escoceses, italianos, alguns aborígenes (nenhum da zona francófona, note-se), checoslovacos e gregos, os homens da folha de plátano, comandados pelo inglês Tony Waiters, alinhavam habitualmente com o seguinte onze: Tino Lettieri; Bob Lenarduzzi, Ian Bridge, Randy Samuel e Bruce Wilson; Paul James, Randy Ragan e David Norman; George Pakos; Igor Vrablic e Carl Valentine. Saltam à memória mais imediata o portento das defesas de Tino Lettieri (italiano de Torino), o playmakerismo de Pakos, o killer instinct de Vrablic - na altura a brilhar incandescentemente no Seraing, da Suiça - os cortes providenciais do carecão Bruce Wilson e a visão estratégica de Paul James que, a par de Bruce, não tinha clube, num gesto exemplar de abnegação e patriotismo.

Instalados nas imediações de Irapuato, os canadianos chegaram com um discurso ambicioso: "o céu é o limite: queremos ganhar. Pelo menos, um jogo", afirmava Waiters à Onze Mondiale. Mas tal não aconteceu contra a França – derrota por um-zero, com golo de Jean Pierre Papin - nem contra a Hungria (0-2, golos de Marton Esterhazy e de Lajos Detari) e muito menos contra a portentosa URSS de Lobanovsky (mais dois no bucho, um de Oleg Blokhin, outro de Zavarov, ambos com assistência de Igor Belanov). Assim se saldou a inovadora e pós moderna presença do Canadá no México oitenta e seis, caracterizada pelo pior e mais entediante futebol jamais praticado, mais adormecedor que qualquer programa de Luís Pereira de Sousa.

Contudo, a selecção canadiana deixou um claro sinal de que os tempos eram de mudança, rumo à pós modernidade. Waiters assumia-se como um amante do futebol naif e de charutada para a frente (conhecido, nalguns meios intelectuais, como estilo britânico). Na verdade, estávamos perante um treinador pragmatista, para quem o critério da verdade de uma ideia é o êxito da acção, discípulo directo de Joaquim Meirim e de William James. Daqui até à pós modernidade vai, como se sabe, um pequeno passo. E esse passo, seguro e firme, foi dado no jogo contra a Hungria, através da introdução de uma nova categoria conceptual que, graças ao seu rotundo e profícuo falhanço, imortalizou esta selecção. Falamos, como é clamorosamente óbvio, da invenção da mini barreira à frente da barreira adversária. Um conceito cuja análise profunda traz consigo o germe da pós modernidade – a ruptura com o conservadorismo instituído, a ideia de crise de valores, a critica da técnica, tão bem propagandeada por Martin Heidegger: aquando da existência de um livre, a selecção canadiana, colocava, entre a bola e a barreira adversária, dois jogadores seus que, invariavelmente levavam com um petardo do seu próprio colega de equipa (por regra, Randy Samuel), inutilizando, desta forma, um livre perigoso, magoando os seus próprios jogadores, divertindo o público presente e permitindo, por fim, uma saída rápida em contra-ataque da equipa adversária. Em suma, um gesto nihilista, desprovido de utlitarismo, uma atitude antropofágica e genial. Com este artefacto pioneiro do pós modernismo, o Canadá e Tony Waiters ofereciam, camonianamente, novos mundos ao mundo: o meu amigo Carlos Queirós, três anos mais tarde, no mundial da Arábia Saudita, desenvolveria e aperfeiçoaria esta barreira, com os resultados que se conhecem. É caso para dizer obrigado, Canadá.



Tony Waiters (em foto tipo passe e a responder à clássica solicitação da imprensa): um pragmático pós moderno, que mudou para sempre o rumo do futebol.

5 - CONCLUSÕES
Pronto, acabou. Aqui fica o mail de Tony Waiters: tw@worldofsoccer.com

8.6.05

A PÓS MODERNIDADE NOS MUNDIAIS DE FUTEBOL
tomo 1 - ITÁLIA 90
por Augusto Justo, proprietário de uma fábrica de sapatos italianos


Os Navigli, em Milão: o bar é o segundo a contar da esquerda.

1. INÍCIO
Há cerca de dois dias, tive o privilégio e a honra de ser reconhecido em Milão. Encontrava-me a encharcar martini binanchi nos Navigli, quando um pós moderno português, a viver na capital da Lombardia, me abordou na rua, dizendo-se grande admirador deste blog a que pertenço. Relembrou-me o que houvera escrito há mais de um ano (mais precisamente, a 11.11.2003), identificou-se como uma das duas centenas de pessoas que me saúda sempre que vou ao Giuseppe Meazza e sugeriu-me que escrevesse sobre aquele que pode ser considerado como um dos mais entediantes mundiais de futebol de que há memória (talvez mesmo só suplantado pelo supliciante Japão/Coreia 2002): falo, como todos já se aperceberam, do Itália 90.


Doutor Gary Lineker, em pose especial para este blog.

2. DESENVOLVIMENTO DE UMA TESE
Ora, para qualquer amador da pós modernidade futebolística, o supracitado mundial foi um tanto ou quanto secante, fazendo jus à asserção do Doutor Gary Lineker, quando afirma que “o futebol são onze contra onze e, no final, ganha a Alemanha”. No que concerne à fenomenologia pós moderna, podemos arriscar dizer que o Itália 90 teve, apenas e só, três momentos dignos de registo nos anais da reflexividade proto-académica. E, caros leitores, desses momentos, todos eles pós modernos qb, dois deles vestem a fina seda dos momentos classicistas, ainda que de forma nada constantes. Foram relâmpagos, promessas vãs que nunca ganharam congruência e continuidade. O resto foi palha epistemológica. Vamos, então, destrinçar cada um desses momentos.



Gianna Nannini, depois de uma conversa com Umberto Eco

2.1 – MOMENTO 1
Milão, 8 de Junho, cerimónia de abertura do mundial: a mítica irmã de Alessandro Naninni, de seu nome Gianna, interpreta o hino do mundial, chamado Un’estate italiana (música de Edoardo Benato): quem não se lembra da cantante (qual Dulce Pontes por antecipação) a berrar, como se disso dependesse a sua própria vida, “notti magicheeeeeee / inseguendo un goaaaaaaaaaal / sotto il cielo / di un'estate italianaaaaaaa // E negli occhi tuoiiiiiiiiii / voglia di vincereeeeeeee / un'estate / un'aaaaaaaaavventura in piu’ “; instantes mais tarde, no jogo inaugural propriamente dito, a pós modernidade atingia o 8 na escala de Richter quando François Omam-Biyik empacota a campeã do mundo Argentina, perante a surpresa do mundo e o gáudio dos milaneses.


Roberto Baggio em pose florentina no jogo contra a Checoslováquia

2.2 – MOMENTO 2, o primeiro clássico pós moderno
O segundo momento pós moderno acontece a 19 de Junho de 1990, perante 80.000 espectadores, no Olímpico de Roma. É também o primeiro momento classicista, ou não estivessemos nós na mátria de tão refinado estilo. Um rapaz de vinte e três anos, nascido a 18 de Fevereiro em Caldogno, recebe a bola logo após o seu meio campo, tabela com um colega, finta uma catrefada de jogadores então Checoslovacos e dispara, em queda e sem apelo nem agravo, para o fundo da baliza defendida por Jan Stejkal. Com a leveza das folhas de outono, o rapaz de Caldogno cai no chão, tal como as lágrimas lhe caem da cara. Tem consciência da beleza do seu golo, qual cúpula de Filippo Brunelleschi, qual estátua de Michelangelo esculpida em mármore de Carrara. Sim, estavamos perante um Renascimento, um episódico regresso à Arte, ao futebol arte, esse mesmo que perecera numa quente tarde em Sevilha, oito anos antes. Decorria o minuto 78 dessa partida e Roberto “Il Divino Codino” Baggio, sela o resultado em 2-0 para a turma de transalpes com um dos golos mais memoráveis de todos os tempos, directamente para a antologia da pós modernidade clássica que tanto prezamos.


Instantes de pós modernidade: a perda de bola de Higuita e o sorriso triunfal de Milla, visto de trás.

2.3 – MOMENTO 3
O terceiro momento só podia ser aquele que se passou ao minuto 19 do prolongamento do Camarões – Colômbia. Dois titãs da pós modernidade, Roger Milla e José René Higuita medem forças no estádio San Paolo, no dia 26 de Junho. O guarda redes anarco-colombiano (não cair no trocadilho fácil de narco-colombiano), anarquista duval e leitor compulsivo de Vannegheim e da sua Arte de Viver para a Geração Nova, tenta fintar a veterania quase racionalista-cartesiana do camaronês desincisivado. Este rouba-lhe a bola e tem a baliza escancarada. Prossegue a caminhada para a glória e abre um dos sorrisos mais cósmicos de que o futebol tem memória. Está feito o dois a zero e os Camarões – treinados por um obscuro herdeiro da geometria de Lobanovsky, o soviético Valeri Nepomniatchi - têm o passaporte carimbado para os quartos de final, onde os espera um jogo intenso, e um árbitro amigo da velha Albion, o senhor Edgardo Codesal Mendez, que não tem pejo em colocar os discípulos de Bobby Robson nas meias finais (o que lhe terá, porventura, valido a nomeação para a final, onde impediu a Argentina, ali chegada sem saber ler nem escrever, de revalidar o título de 86). O sorriso de Milla está para o futebol como o de Mona Lisa está para as artes ou o de Milton Mendes para o União da Madeira. Este golo e este sorriso constituem, portanto, o segundo momento de pós modernidade clássica deste mundial.
Aqui fica o onze camaronês que esmagou a Colômbia de Francisco “Paco” Maturana, perante 50026 pessoas e sob a arbitragem do senhor Tullio Lanese, auxiliado pelo sírio Jamal Al-Sharif e pelo costa-riquenho Berny Ulloa Morera:
16 - Thomas N'Kono
3 - Jules Onana
5 - Bertin Ebwelle
14 - Stephen Tataw
17 - Victor N'Dip Akem
2 - Andre Kana-Biyick
8 - Emile M'Bouh (mais tarde encantaria as gentes de Guimarães)
10 - Louis-Paul M'Fede
20 - Cyrille Makanaky
7 - Francois Omam-Biyick
21 - Emmanuel Maboang Kessack

Jogaram ainda e obviamente: Roger Milla, camisola 9, nascido a 20 de Maio de 1952 e, com a camisa 18, Boneventura Djonkep



Valeri Nepomniatchi, esse monstro sagrado afro-soviético.

3. EPÍLOGO
Vicissitudes como as lágrimas de Maradona, na final de 8 de Julho, o grande Inglaterra-Bélgica dos oitavos de final, o sorteio para desempatar o grupo F, a contratação de Skuhravy pelo Sporting, na esteira do que houvera feito com Negrete em 86, o cabelo de Valderrama ou mesmo até a cuspidela de Rijkaard a Vöeller, são pontos menores de um divertido mundial monótono. A pós-modernidade galopava no futebol internacional. Bastou ver que, o mundial seguinte realizou-se nos Estados Unidos, país que percebe tanto de futebol como eu de física quântica.

3.6.05

ATÉ SEMPRE, JOSÉ ANTÓNIO PRUDÊNCIO CONDE.