18.6.05

A PÓS MODERNIDADE NOS MUNDIAIS DE FUTEBOL
tomo 2 – MÉXICO OCHENTA Y SEIS
por Quarlos “Panchito” Eirós, com a ajuda de Orlando Dias Agudo e Gabriel Alves (ambos sempre entre aspas) e com recurso ao precioso acervo fotgráfico do Planet World Cup



México ochenta y seis, México ochenta y seis, el mundo unido por un balón.

1 - INTRÓITO
Que dizer do melhor mundial de futebol de todos os tempos? No entender da escola cínica grega, podia começar por referir que o odiei. Mas não. A honestidade intelectual sempre foi um dos meus pontos fortes, desde a pré primária em Quimbres, Portugal.
Que dizer do melhor mundial de futebol de todos os tempos, então? A tarde de 31 de Maio de 1986 estava morna, e nem o discurso de inauguração do presidente Miguel de la Madrid pareceu aquecer italianos e búlgaros, que empataram a um. Assim começava o México 86, mascoteado pelo Pique, encantado por um hino monumental, cuja letra andava à volta disto: “el pique ha comenzado / en juego está el balón / latir de corazones / al ver que se ha anotado el primer goooool / el gol es la alegria del mundial ochenta y seis / confiança en el deporte eso es mi México / México (…)".



Manuel Bento em Pop Art Warholiana e a expressiva borra de Frederico Rosa no jogo contra a Inglaterra

2 – A PÓS MODERNIDADE TRAUMÁTICA PORTUGUESA
Alcácer Quibir, Goa, Borda do Campo, Guimarães e Saltillo. Aparentemente, localidades sem nada em comum. Aprofundadamente, todas elas têm a marca da humilhação lusitana. Lugares de perda, lugares de trauma psicossociológico. A participação portuguesa no mundial de 86 começa precisamente num desses lugares: Saltillo, mais concretamente em Coahuila, no Motel La Torre. José Torres chegava ao México com o “deixem-me sonhar” carimbado no passaporte da esperança, e com ele uma equipa mítica, cheia de bigodes e vontade de ganhar… mais prémios de jogo. Aqui se iniciava a participação pós moderna portuguesa, com uma vincada desilusão em relação aos ideais da modernidade (estágios bem programados, jogos treino, prémios acertados). Seguiu-se a a adaptação à altitude, a greve e a conferência de imprensa, o desnorte do treinador, a ira de Silva Resende e a intervenção de Manel Alegre na Assembleia da República. Por fim, veio o futebol, com um patético jogo treino contra uma equipa da terceira divisão distrital de Monterrey e o primeiro jogo contra a Inglaterra, onde Portugal entrou em campo com uma borra memorável. Contudo, “Carlos Manuel repetia Estugarda” e incendiava o sonho português, fosse ele qual fosse, com uma vitória por um a zero without knowing how to read or write. Mas o azar estava escritono fado lusitano. Num jogo treino, Manuel Galrinho Bento fractura o perónio, depois de uma entrada mais ríspida de José António, O guarda redes é substituido por Vítor Damas, deixando o belenense Jorge Martins cheio de orgulho por ter sido suplente numa fase final de um mundial. Segundo jogo, primeira derrota. O adversário, naquela tarde de sete de Junho, foi a Polónia de Pawlák, Zmuda e Smolarek, que marcou o golo da vitória. No jogo contra Marrocos, a turma dos Infantes “acreditava em tudo menos que Marrocos marcasse. E a verdade é que os marroquinos marcaram três golos. Cada um ao seu estilo, cada um ao seu jeito”, sendo de sublinhar o petardo de Abdelkrim Krimau que selou o triunfo por três a um. Diamantino, agora Diamantino Miranda, ainda reduziu com um golo de antologia, à meia volta. Tarde demais: estava aberta mais uma página negra no nosso futebol, com a debandada pós Saltillo. A participação portuguesa no mundial do México 86 fez escola. Veja-se o que sucedeu em 2002 (estágios, meninas, dentes de alho, beach boys, prémios de jogo e participação vergonhosa) e cogite-se onde está a base, a origem, de tudo isto. A resposta é simples: no Motel La Torre Torre, sito à Carretera 57 Km, 869, Saltillo e com telefone nº 0052-844-430-0600.



Perfume of the stars: Hugo Sanchez cambalhoteia, imitando o então júnior Fernando Couto, Maradona impotente perante a fúria Coreana e Deus, empurrando para a baliza de Peter Shilton.

3 – UM MUNDIAL ILUMINISTA
O mundial em si foi uma pleíade de revelações, de brilhos e de luzes: comovo-me ao recordar o futebol marcial e os petardos da Coreia do Sul, com Cha Bum Kum em grande nível, a provar que “o futebol, naquelas paragens, também já nasceu”, bem como não escondo a veneração às equipas sensação que foram Marrocos, de Zaki “já muito pretendido em Espanha” e o próprio México, de Pablo Larios “por muitos considerado o melhor”, Raul Cervin e Hugo Sanchez (sem esquecer Manuel Negrete, cujo golaço contra a Bulgária de Mladenov lhe valeria um contrato de férias no Sporting). Mas falar neste mundial sem mencionar a Hungria de Lajos Detari e dos irmãos Laszlo e Peter Diszlt ou sem rememorar as míticas selecções da Irlanda do Norte, de Pat Jennings e Billy Hamilton, e do Iraque, de Raad Hammoudi e Ali Hussein Chebab seria a mesma coisa que ir aos Uffizzi e deixar escapar o Trittico Portinari de Hugo van der Goes. Outros momentos em destaque são de assinalar, para além das peripatéticas deambulações de Maradona contra a Inglaterra e Bélgica: relembremos o URSS 3, Bélgica 4, o Brasil- França que “mais parecia ser jogado por deuses que por homens, mas os deuses não erram e o homem falha” (e por isso Zico entregou o ouro a uma França que acreditava “até à morte da jogada”), relembremos Valdano a "perguntar a Tony Schummacher para onde quer a bola", na final no estádio Azteca 2000, e os estoiros de Josimar. Finalizemos esta rememoração iluminada com a menção à “digna marca” de Preben Elkjaer Larssen, que pereceu aos pés da Espanha de Butragueño, um “abutre faminto de golos” numa tarde em que os marcou em número de quatro.



Grandes Canadianos: David Norman comido por Oleg Blokhin (à direita vislumbra-se o braço de Randy Samuel) e mais dois cromos: Pakos,o playmaker e Garraway, habitualmente suplente por causa do bigode.

4 – O SÍMBOLO DA PÓS MODERNIDADE NO MUNDIAL DE 86
Perguntará o leitor paciente onde pára a pós modernidade neste mundial. Será que a houve? Onde posso encontrá-la? Nas defesas de Dasaev e Jean Marie Pfaff? Nos carrinhos assassinos de Maxime Bossis e Thomas Berthold? Na Escócia de Jimmy Leighton, Steve Archibald e Gordon Strachan? Na continuidade dos roubos de igreja que atacavam sempre a selecção da URSS? Na introdução da “maca milagreira”? Nos “pezinhos de lã” com que a RFA chegou à final? Não, caro leitor, em nenhum desses epifenómenos. Por ter sido um mundial supinamente bom, por ter tido um nível intelectual deleitante para todos os sistematizadores da filosofia do futebol, (há mesmo quem considere este mundial como o último da Modernidade), pelo facto da selecção do Brasil (ainda comandada por Telé Santana) apresentar um futebol-arte próximo do que patenteou em 82, a pós modernidade encontrava-se, no quente verão de um nove oito seis, numa fase muito embrionária. Contudo, fenómenos pós modernos começavam a despontar. Podemos identificar, para além da participação portuguesa, um outro fenómeno desta natureza. Mais forte, mais intenso, mais definido: a participação da selecção do Canadá.

A selecção canadiana conquistou o passaporte para o México depois de cilindrar as Honduras e a Costa Rica num disputado grupo de apuramento. Com uma equipa multinacional (percursora da França de 1998) que contava com escoceses, italianos, alguns aborígenes (nenhum da zona francófona, note-se), checoslovacos e gregos, os homens da folha de plátano, comandados pelo inglês Tony Waiters, alinhavam habitualmente com o seguinte onze: Tino Lettieri; Bob Lenarduzzi, Ian Bridge, Randy Samuel e Bruce Wilson; Paul James, Randy Ragan e David Norman; George Pakos; Igor Vrablic e Carl Valentine. Saltam à memória mais imediata o portento das defesas de Tino Lettieri (italiano de Torino), o playmakerismo de Pakos, o killer instinct de Vrablic - na altura a brilhar incandescentemente no Seraing, da Suiça - os cortes providenciais do carecão Bruce Wilson e a visão estratégica de Paul James que, a par de Bruce, não tinha clube, num gesto exemplar de abnegação e patriotismo.

Instalados nas imediações de Irapuato, os canadianos chegaram com um discurso ambicioso: "o céu é o limite: queremos ganhar. Pelo menos, um jogo", afirmava Waiters à Onze Mondiale. Mas tal não aconteceu contra a França – derrota por um-zero, com golo de Jean Pierre Papin - nem contra a Hungria (0-2, golos de Marton Esterhazy e de Lajos Detari) e muito menos contra a portentosa URSS de Lobanovsky (mais dois no bucho, um de Oleg Blokhin, outro de Zavarov, ambos com assistência de Igor Belanov). Assim se saldou a inovadora e pós moderna presença do Canadá no México oitenta e seis, caracterizada pelo pior e mais entediante futebol jamais praticado, mais adormecedor que qualquer programa de Luís Pereira de Sousa.

Contudo, a selecção canadiana deixou um claro sinal de que os tempos eram de mudança, rumo à pós modernidade. Waiters assumia-se como um amante do futebol naif e de charutada para a frente (conhecido, nalguns meios intelectuais, como estilo britânico). Na verdade, estávamos perante um treinador pragmatista, para quem o critério da verdade de uma ideia é o êxito da acção, discípulo directo de Joaquim Meirim e de William James. Daqui até à pós modernidade vai, como se sabe, um pequeno passo. E esse passo, seguro e firme, foi dado no jogo contra a Hungria, através da introdução de uma nova categoria conceptual que, graças ao seu rotundo e profícuo falhanço, imortalizou esta selecção. Falamos, como é clamorosamente óbvio, da invenção da mini barreira à frente da barreira adversária. Um conceito cuja análise profunda traz consigo o germe da pós modernidade – a ruptura com o conservadorismo instituído, a ideia de crise de valores, a critica da técnica, tão bem propagandeada por Martin Heidegger: aquando da existência de um livre, a selecção canadiana, colocava, entre a bola e a barreira adversária, dois jogadores seus que, invariavelmente levavam com um petardo do seu próprio colega de equipa (por regra, Randy Samuel), inutilizando, desta forma, um livre perigoso, magoando os seus próprios jogadores, divertindo o público presente e permitindo, por fim, uma saída rápida em contra-ataque da equipa adversária. Em suma, um gesto nihilista, desprovido de utlitarismo, uma atitude antropofágica e genial. Com este artefacto pioneiro do pós modernismo, o Canadá e Tony Waiters ofereciam, camonianamente, novos mundos ao mundo: o meu amigo Carlos Queirós, três anos mais tarde, no mundial da Arábia Saudita, desenvolveria e aperfeiçoaria esta barreira, com os resultados que se conhecem. É caso para dizer obrigado, Canadá.



Tony Waiters (em foto tipo passe e a responder à clássica solicitação da imprensa): um pragmático pós moderno, que mudou para sempre o rumo do futebol.

5 - CONCLUSÕES
Pronto, acabou. Aqui fica o mail de Tony Waiters: tw@worldofsoccer.com