8.6.05

A PÓS MODERNIDADE NOS MUNDIAIS DE FUTEBOL
tomo 1 - ITÁLIA 90
por Augusto Justo, proprietário de uma fábrica de sapatos italianos


Os Navigli, em Milão: o bar é o segundo a contar da esquerda.

1. INÍCIO
Há cerca de dois dias, tive o privilégio e a honra de ser reconhecido em Milão. Encontrava-me a encharcar martini binanchi nos Navigli, quando um pós moderno português, a viver na capital da Lombardia, me abordou na rua, dizendo-se grande admirador deste blog a que pertenço. Relembrou-me o que houvera escrito há mais de um ano (mais precisamente, a 11.11.2003), identificou-se como uma das duas centenas de pessoas que me saúda sempre que vou ao Giuseppe Meazza e sugeriu-me que escrevesse sobre aquele que pode ser considerado como um dos mais entediantes mundiais de futebol de que há memória (talvez mesmo só suplantado pelo supliciante Japão/Coreia 2002): falo, como todos já se aperceberam, do Itália 90.


Doutor Gary Lineker, em pose especial para este blog.

2. DESENVOLVIMENTO DE UMA TESE
Ora, para qualquer amador da pós modernidade futebolística, o supracitado mundial foi um tanto ou quanto secante, fazendo jus à asserção do Doutor Gary Lineker, quando afirma que “o futebol são onze contra onze e, no final, ganha a Alemanha”. No que concerne à fenomenologia pós moderna, podemos arriscar dizer que o Itália 90 teve, apenas e só, três momentos dignos de registo nos anais da reflexividade proto-académica. E, caros leitores, desses momentos, todos eles pós modernos qb, dois deles vestem a fina seda dos momentos classicistas, ainda que de forma nada constantes. Foram relâmpagos, promessas vãs que nunca ganharam congruência e continuidade. O resto foi palha epistemológica. Vamos, então, destrinçar cada um desses momentos.



Gianna Nannini, depois de uma conversa com Umberto Eco

2.1 – MOMENTO 1
Milão, 8 de Junho, cerimónia de abertura do mundial: a mítica irmã de Alessandro Naninni, de seu nome Gianna, interpreta o hino do mundial, chamado Un’estate italiana (música de Edoardo Benato): quem não se lembra da cantante (qual Dulce Pontes por antecipação) a berrar, como se disso dependesse a sua própria vida, “notti magicheeeeeee / inseguendo un goaaaaaaaaaal / sotto il cielo / di un'estate italianaaaaaaa // E negli occhi tuoiiiiiiiiii / voglia di vincereeeeeeee / un'estate / un'aaaaaaaaavventura in piu’ “; instantes mais tarde, no jogo inaugural propriamente dito, a pós modernidade atingia o 8 na escala de Richter quando François Omam-Biyik empacota a campeã do mundo Argentina, perante a surpresa do mundo e o gáudio dos milaneses.


Roberto Baggio em pose florentina no jogo contra a Checoslováquia

2.2 – MOMENTO 2, o primeiro clássico pós moderno
O segundo momento pós moderno acontece a 19 de Junho de 1990, perante 80.000 espectadores, no Olímpico de Roma. É também o primeiro momento classicista, ou não estivessemos nós na mátria de tão refinado estilo. Um rapaz de vinte e três anos, nascido a 18 de Fevereiro em Caldogno, recebe a bola logo após o seu meio campo, tabela com um colega, finta uma catrefada de jogadores então Checoslovacos e dispara, em queda e sem apelo nem agravo, para o fundo da baliza defendida por Jan Stejkal. Com a leveza das folhas de outono, o rapaz de Caldogno cai no chão, tal como as lágrimas lhe caem da cara. Tem consciência da beleza do seu golo, qual cúpula de Filippo Brunelleschi, qual estátua de Michelangelo esculpida em mármore de Carrara. Sim, estavamos perante um Renascimento, um episódico regresso à Arte, ao futebol arte, esse mesmo que perecera numa quente tarde em Sevilha, oito anos antes. Decorria o minuto 78 dessa partida e Roberto “Il Divino Codino” Baggio, sela o resultado em 2-0 para a turma de transalpes com um dos golos mais memoráveis de todos os tempos, directamente para a antologia da pós modernidade clássica que tanto prezamos.


Instantes de pós modernidade: a perda de bola de Higuita e o sorriso triunfal de Milla, visto de trás.

2.3 – MOMENTO 3
O terceiro momento só podia ser aquele que se passou ao minuto 19 do prolongamento do Camarões – Colômbia. Dois titãs da pós modernidade, Roger Milla e José René Higuita medem forças no estádio San Paolo, no dia 26 de Junho. O guarda redes anarco-colombiano (não cair no trocadilho fácil de narco-colombiano), anarquista duval e leitor compulsivo de Vannegheim e da sua Arte de Viver para a Geração Nova, tenta fintar a veterania quase racionalista-cartesiana do camaronês desincisivado. Este rouba-lhe a bola e tem a baliza escancarada. Prossegue a caminhada para a glória e abre um dos sorrisos mais cósmicos de que o futebol tem memória. Está feito o dois a zero e os Camarões – treinados por um obscuro herdeiro da geometria de Lobanovsky, o soviético Valeri Nepomniatchi - têm o passaporte carimbado para os quartos de final, onde os espera um jogo intenso, e um árbitro amigo da velha Albion, o senhor Edgardo Codesal Mendez, que não tem pejo em colocar os discípulos de Bobby Robson nas meias finais (o que lhe terá, porventura, valido a nomeação para a final, onde impediu a Argentina, ali chegada sem saber ler nem escrever, de revalidar o título de 86). O sorriso de Milla está para o futebol como o de Mona Lisa está para as artes ou o de Milton Mendes para o União da Madeira. Este golo e este sorriso constituem, portanto, o segundo momento de pós modernidade clássica deste mundial.
Aqui fica o onze camaronês que esmagou a Colômbia de Francisco “Paco” Maturana, perante 50026 pessoas e sob a arbitragem do senhor Tullio Lanese, auxiliado pelo sírio Jamal Al-Sharif e pelo costa-riquenho Berny Ulloa Morera:
16 - Thomas N'Kono
3 - Jules Onana
5 - Bertin Ebwelle
14 - Stephen Tataw
17 - Victor N'Dip Akem
2 - Andre Kana-Biyick
8 - Emile M'Bouh (mais tarde encantaria as gentes de Guimarães)
10 - Louis-Paul M'Fede
20 - Cyrille Makanaky
7 - Francois Omam-Biyick
21 - Emmanuel Maboang Kessack

Jogaram ainda e obviamente: Roger Milla, camisola 9, nascido a 20 de Maio de 1952 e, com a camisa 18, Boneventura Djonkep



Valeri Nepomniatchi, esse monstro sagrado afro-soviético.

3. EPÍLOGO
Vicissitudes como as lágrimas de Maradona, na final de 8 de Julho, o grande Inglaterra-Bélgica dos oitavos de final, o sorteio para desempatar o grupo F, a contratação de Skuhravy pelo Sporting, na esteira do que houvera feito com Negrete em 86, o cabelo de Valderrama ou mesmo até a cuspidela de Rijkaard a Vöeller, são pontos menores de um divertido mundial monótono. A pós-modernidade galopava no futebol internacional. Bastou ver que, o mundial seguinte realizou-se nos Estados Unidos, país que percebe tanto de futebol como eu de física quântica.