20.6.05

FUTEBOL POÉTICO
É com desmedido orgulho que publicamos três belíssimos textos de um grande vulto das letras sul americanas: o uruguaio Eduardo Galeano, que nutre pela bola um fascínio poético idêntico ao fascínio pós modernista que por ela também sentimos. A tradução ficou a cargo, como é óbvio, de Augusto "Burruchaga" Justo.


Professor Doutor por extenso Eduardo Galeano: um Enzo Francescoli das palavras.

O FUTEBOL
A história do futebol é uma triste viagem do prazer até ao dever. À medida que o desporto se tornou numa indústria, desterrou a beleza que nasce da alegria de jogar por si só.
Neste mundo de fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil e é inútil o que não é rentável. Ninguém lucra com essa loucura que faz com que o homem volte a ser menino por um instante, jogando como joga a criança com um balão, como o gato com um novelo de lã: bailarino que dança com a bola, leve como um balão que sobe no ar e leve como o novelo que rodopia, a jogar sem saber que joga, sem motivo, sem relógio, sem árbitro.
O jogo converteu-se num espectáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores -futebol para assistir - e o espectáculo converteu-se num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para se jogar, mas sim para impedir que se jogue. A tecnocracia do desporto profissional impôs um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia.
Por sorte, nalguns campos, de vez em quando ainda aparece algum descarado de cara suja que sai do guião e comete o disparate de fintar toda a equipa adversária, e o árbitro, e o público das tribunas, pelo puro gozo do corpo que se lança à proibida aventura da liberdade.

O GOLO
O golo é o orgasmo do futebol. Tal como o orgasmo, o golo é cada vez menos frequente na vida moderna.
Há meio século, era raro um desafio acabar sem golos. Zero a zero, duas bocas abertas, dois bocejos. Agora, os onze jogadores passam o jogo inteiro colados ao travesseiro, dedicados a evitar os golos e sem tempo para os marcar.
O entusiasmo que se solta cada vez que a bola branca sacode a rede pode parecer mistério ou loucura, mas a verdade é que o milagre acontece poucas vezes. O golo, ainda que seja um golinho, resulta sempre em gooooooooooooooooooooooolo na garganta dos locutores de rádio, um dó de peito capaz de deixar Caruso mudo para sempre, e a multidão delira e o estádio esquece-se que é de cimento e desprende-se da terra e sobe no ar.

O ADEPTO
Uma vez por semana, o adepto foge da sua casa e acorre ao estádio.
Flamejam as bandeiras, soam as cornetas, os foguetes, os tambores, chovem as serpentes de papel; a cidade desaparece, a rotina esquece-se, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus mostra as suas divindades. Embora o adepto possa contemplar o milagre, mais comodamente, no ecrã de televisão, prefere empreender a peregrinação a este lugar onde pode ver os seus anjos em carne e osso, lutando contra demónios de turno.
Aqui, o adepto agita o cachecol, engole saliva, glup, engole veneno, come o boné, sussurra palavrões e maldições e rapidamente rasga a garganta numa ovação e salta como uma pulga, abraçando o desconhecido que grita golo ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o adepto é muitos ao mesmo tempo. Com milhares de devotos, partilha a certeza que somos os melhores, todos os árbitros estão vendidos, todos os rivais são enganadores.
Rara é a vez que o adepto diz: “hoje joga o meu clube”. Antes diz: “hoje jogamos nós”. Bem sabe este jogador número doze que é quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, como bem sabem os outros onze jogadores que jogar sem adeptos é como bailar sem música.
Quando o desafio acaba, o adepto, que não se mexeu da bancada, celebra a sua vitória: que goleada lhes espetamos, que coça lhes demos, ou chora a sua derrota: lixaram-nos outra vez, árbitro ladrão. E então o sol desaparece e o adepto desaparece. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nas bancadas de cimento ardem, aqui e acolá, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto se apagam luzes e vozes. O estádio fica sozinho e também o adepto regressa à sua solidão, um eu que fora um nós: o adepto afasta-se, dispersa-se, perde-se, e o domingo é melancólico como uma quarta-feira de cinzas depois da morte do Carnaval.

Eduardo Galeano, in El Fútbol a Sol y Sombra, Catálogos Editora, Buenos Aires, 1995.