29.6.05

A PÓS MODERNIDADE NOS MUNDIAIS DE FUTEBOL
tomo 3 – USA 94

Por Augusto Fair Enough


O grevista: a pior mascote de sempre.

1 - INTR8
O simples facto de um mundial de futebol se realizar num país chamado Estados Unidos da América seria suficiente para encerrar o debate sobre a pós modernidade neste mesmo mundial, decorrido entre 17 de Junho e 17 de Julho de 1994. Acaso já imaginou, caro leitor, um campeonato mundial de basebol ser jogado em Silves, Setúbal, Sines e Sintra, isto para apenas citar cidades começadas com “S”? Acaso já imaginou a presença de uma comitiva lusa num campeonato de bobsleigh? Eram cogitações desta estirpe que cruzavam a mioleira deste escriba,no verão do quarto ano da década de noventa. “Algo vai no reino do futebol, qualquer dia a Grécia ainda ganha um campeonato da Europa”, pensava eu – e bem - naqueles idos.
O mundial em si foi, sem dúvida, um desfiar de individualidades. As equipas ficaram relegadas para as infraestruturas marxistas. Alguém se lembra quem ganhou este mundial? Sinceramente, só a muito custo me apercebo que foi, efectivamente, o Brasil.





O Jéquin de Setubal e o Michel de Benfica mais o Baggio do Tibete: individualidades em destaque na pós modernidade do USA 94.

2-UM MUNDIAL DE FIGURAS
O USA 94, mascoteado por um abjecto canídeo apodado de Striker (grevista, em tradução literal) foi, como se referiu, um mundial de figuras: em segundo plano ficam os grandes jogos da Argentina contra a Roménia (com o suspenso Maradona a berrar, da bancada, “hijos de puta, hijos de puta” no momento imediatamente a seguir a um golo da sua Argentina), o Itália – Bulgária e o Brasil-Holanda. Antes nos detemos no perfume de Magi Hagi (o Maradona dos Cárpatos) e nos petardos de Dumitrescu, deleitamo-nos com o golo e a raiva do efedrinado Maradona das Pampas, rendemo-nos ao rock and roll de Alexi Lalas, carpimos a morte de Andres Escobar, orgulhamo-nos por Salenko ter quebrado o record de Eusébio e de Roger Milla se ter tornado, aos 42 anos (e todos sabemos que levou o filho mais novo com ele quando se foi registar), no mais velho marcador de golos num mundial.
A pós modernidade figurativa, neste mundial de caras, pertence, por inteiro, a três figuras:

a) Michel Georges Jean Ghislain Preud’Homme
Aos trinta e cinco anos foi eleito o melhor guarda-redes do campeonato. Cada defesa sua fazia as delícias de qualquer amante da fotografia e do bailado, da dinâmica do movimento e da metafísica dos costumes. Arte e artista nas balizas: quem não se lembra da quantidade industrial – logo, pós moderna – de defesas impossíveis que realizou no jogo contra a Alemanha? Se não tivesse já escrito isto, diria que quem tinha um pacto com o diabo era mesmo este belga. Mais pós moderno do que a fotogenia das suas exibições, só mesmo a boca aberta da nação benfiquista, uma vez que já tinha contrato assinado com os da Luz. Provavelmente, e a par de Clóvis, foi o único tiro certeiro de Artur Jorge, salvo aqueles que deu no seu próprio pé. Gabriel Alves chamava-lhe mesmo “Próidome”.

b) Rashid Yekini
“Vai Jéquin!”, gritavam entusiasmados os sadinos de bigode e tez morena, agarrados às grades do Bonfim, quando o portento africano pegava na bola e levava, em falta ou em drible, tudo à sua frente. É graças a este nigeriano natural de Kaduna, que Setúbal se colocou no mapa do futebol mundial. A comemoração pós moderna do seu golo contra a Bulgária de Letchkov, agarrado às redes da baliza, em homenagem aos adeptos setubalenses, tinha o perfume da escola artística sadina: cheirava a Bocage, a Luisa Todi, a Fernando Luís, a Toy... cheirava a Sado.

c) Roberto Baggio
Depois da arte consubstanciada no golo contra a Checoslováquia –que, se calhar, tmabém poderá ter estado na origem do desmembramento desta enquanto país – il Divino Codino chegava às Américas disposto a deixar em campo a baba brilhante do seu futebol caracoleante (esta frase é candidata à melhor metáfora da blogosfera lusofalante). E assim o fez, ao longo de vários jogos, de várias fintas, de vários momentos de futebol filigrânico (contra a Bulgária, por exemplo). Mas a sorte é madrasta e igualmente pós moderna: tinha tudo para ser feliz, mas falhou o penalty decisivo contra o Brasil e foi achincalhado no aeroporto de Fiumiccino. Mas a “vendetta é un piatto che si serve freddo” e Baggio, algum tempo depois, rendeu-se ao budismo.





O sorriso de Owairan, o vai buscá-la Atmatzidis e o rocanróle americano.

3 - A POUCA PÓS MODERNIDADE DOS COLECTIVOS
No que diz respeito às equipas propriamente ditas, e ressalvando o melhor dos futebóis praticado pela Roménia, são de destacar, sob o prisma pós moderno, as prestações da:

a) Arábia Saudita
Jamais esqueceremos o futebol sorridente dos discípulos do argentino Jorge Solari, que encantou o mundo com triunfos retumbantes sobre a Bélgica e Marrocos. Jamais esqueceremos a pós modernidade do sorriso de Saeed Owairan, gazelante avançado do colosso Al-Shabab. Este mundial jamais teria sido o que foi sem a presença desta selecção.

b) Grécia
Três jogos, três derrotas, zero golos marcados, dez sofridos. Assim se contabiliza o saldo dos comandados de Alketas Panagulias, um obscuro grego de sessenta anos com uma visão incompreendida do futebol. Hélas. Acima de tudo, a Grécia mostrava coerência dentro do campo, coerência essa miraculosamente quebrada em Lisboa, numa fria tarde de Julho de 2004. Para mais tarde recordar, aqui fica o mítico onze que encaixou quatro secas da Bulgária: na baliza, Ilias Atmatzidis, defesa composta por Stratos Apostolakis, Ioannis Kalitzakis, Vaios Karagiannis, Kiriakos Karataidis, Nikos Nioplias, Spiros Marangos Minas Hantzidis, Savvas Kofidis, meio campo com Nikos Machlas e lá na frente, Alexis Alexoudis. Foram, em bom rigor, a única equipa pós moderna deste mundial.

c)Estados Unidos da América
Quem diria que iriam chegar aos oitavos de final, perecendo ante o campeão? Treinados pelo cidadão do mundo Bora Milutinovic (que aparece sempre e incompreensivelmente a treinar uma selecção em fases finais do campeonato do mundo), os americanos tinham grandes baluartes da pós modernidade no seu plantel: o mítico Tony Meola (foi tão falado para o Benfica que deve ter dado o toque ao seu amigo Zach Thornton para vir para a Luz), o rocker Alexi Lalas, o WASP Joe-Max Moore, o italianado Paul Caligiuri, o registra Tab Ramos, a promessa Cobi Jones, o boxer Marcelo “Son of Rocky” Balboa e o grande adepto e connaisseur de futebol, Al Gore. Só não foram campeões porque a FIFA não deixou.



Good Evening Pasadenaaaaaaaaaaaaaa

4 - O EPICENTRO DE PÓS MODERNIDADE DO USA 94
Contudo, os dois grandes pós fenómenos deste mundial devem-se a um português e foram apenas e só sentidos no mundo lusófono, no dia 17 de Julho de 1994: aquando da transmissão da final, que opôs o Brasil de Dunga à Itália de Massaro, os comentários ficaram a cargo de um colosso de rodes da filosofia sistémica pós moderna, um venerável homem, um génio capaz de transformar um Forjães – Mamarrosa de fim de época numa excitante final da liga dos campeões: o Professor Doutor Gabriel Alves. E tais fenómenos dão-se no início da transmissão quando o Professor nos situa no espaço com um imperial “benvindos ao estádio de Rosebowl, Pasadena, grande Los Angeles” (fazendo relembrar o imortal "Good evening, Pasadena" gritado pelo vocalista dos Depeche Mode, seis anos antes) e, um pouco depois, se refere às condições climatéricas anunciando uma “humidade relativa muito superior a 100%”, questionando a própria relatividade da humidade, bem como a escala de valores pela qual, até então, esta se regia. O mundial pós modernista estava, definitivamente, ganho.