23.10.05


Abel Luís Xavier: "sou contrabandista de amor e saudade / transporto no peito a minha cidade"

O MUNDO PÓS MODERNO DOS EMPRESÁRIOS, case study # 3
por Augusto Justo, caixeiro viajante.

Lyotard afirmou, uma vez ao jantar, que "Ninguém possui a mesma história, ninguém sabe as mesmas coisas”. Nesta asserção terá pensado Abel Luís da Silva Costa Xavier, nampulense de origem, quando decidiu escolher o seu empresário. Ao contrário do inempresário de Beto ou do Pós-Empresário de Bazan, Abel escolheu aquele que pode ser considerado O Melhor Empresário De Todos Os Tempos – ou pelo menos O Empresário Com Mais Poder de Colocação de Sempre. O leitor que escolha. O que é certo é que Xavier pode gabar-se de ter um génio das colocações do melhor que existe. Se o Ministério da Educação pudesse ter um homem destes nos quadros, era garantido que não havia um único professor sem colocação. Porque este Homem Oculto – é dele que falamos – conseguiu pôr um jogador mediano (que até poderia gabar-se de ter sido internacional A quando militava num clube da segunda divisão, não fosse o facto de ser um dos delfins de Carlos Queirós, então seleccionador A) a jogar um pouco por toda a Europa, inclusivamente em clubes de topo. Abel é, sem saber como, o nosso Europetrotter. Do Amadora vai para o Benfica, do Benfica para o Bari, do Bari para o Oviedo, do Oviedo para o PSV Eindhoven. Até aqui, tudo bem. O rapaz está na flor da idade e não compromete. Mas o pior estava para vir: é que é precisamente na curva descendente da carreira, naquele exacto ponto em que os jogadores como João Pinto assinam o contrato da vida deles – ou seja, renovam até aos 33 anos com o clube onde já estão – que Abel, natural de Nampula, pula que se farta. De Eindhoven, com 28 anos, em vez de regressar, dá o salto para o Everton. Do Everton, provoca tudo e ninguém ao assinar com o arqui-rival Liverpool. Das margens do Mersey, dá um pulo para o Galatasaray. Das margens do Bósforo, muda-se para o Hannover. Da Alemanha, aos 32 anos, consegue um contrato com a... Roma. Repar-se: não é com o Livorno nem com a Salernitana. É com a Roma!, caros leitores, com a R-O-M-A! Insatisfeito com o buliço mediterrânico da capital italiana, consegue, aos 33 anos, contrato com o Middlesborough. Impressionante. Portugal, Espanha, Holanda, Turquia, Inglaterra, Alemanha e Itália. Tantos clubes, tantas culturas... Será que Xavier – Csaviour, como era conhecido em Inglaterra – fala estes idiomas todos? Será que tem espaço para as camisolas dos clubes por onde passou? Cremos que não.
É caso para dizer: o que faz correr Xavier? Porque é que tantos o aceitam? Será do seu ar exótico que potencia o medo nos adversários? Eis um belo naipe de perguntas retóricas. Apenas nos cumpre dizer que Abel Luís se afigura ante nossos olhos como um Marco Polo da era futebolística, deixando a anos luz o também errante Paulo Sousa (que não tinha um bom empresário: era apenas um grande futebolísta, desejado por todos, com maus joelhos).
Atendendo à aludida meridiana qualidade do jogador em causa, o Périplo de Xavier – nome proposto para a sua biografia – só pode ser equiparado à onírica ida de um Carlos Carneiro para o Barcelona ou mesmo de um Ricardo para o Arsenal. Com um empresário destes, impossible is nothing.

19.10.05


Beto celebra efusivamente um não-golo marcado ao não serviço do Real Madrid

O MUNDO PÓS MODERNO DOS EMPRESÁRIOS - CASE STUDY # 2
por Augusto Justo, Inequívoco

No mundo dos empresários pós modernos, existem os bons e os maus. Os vigaristas e os probos (que lavram no rio). Existem, igualmente, os parafenomenais inempresários. O caso seguinte – verídico, tal como o do post anterior – relata, empiricamente, a acção ou a inacção de um inempresário.
Roberto Luís Gaspar Deus Severo nasce em Lisboa no ano de 1976. Iniciado no Pontinha, junior no Sporting, teve passagens pelo Lamas e pelo Campomaiorense. Em 96, no mesmo ano em que Bazan ia para a Covilhã, Beto fixa-se no Sporting de Lisboa e de lá mais não sai. Vinte e quatro jogos numa época são suficientes para que os jornais falem em “mais um caso de sucesso das escolas do Sporting” que “começa a despertar interesse pela Europa fora”. Por “Europa fora”, entenda-se, apenas e só, o Real Madrid. “O Beto vai para o Real Madrid”: eis-nos perante um dos maiores hypes do futebol português, levados a cabo por um não empresário. Esta é uma frase seminal, que preencheu conversas intermináveis em leoninas noites de verão. Ano após ano, verão após verão, a hipotética ida de Beto para o Real Madrid foi um fenómeno tão certo como a ida a banhos para a Figueira da Foz de qualquer boa família de Coimbra. O fenómeno transformou-se em costume e qualquer Verão só se assumia em pleno quando um jornal desportivo anunciava a ida de Beto para o Real, muitas vezes por troca com Rodrigo Fabri ou mesmo Sávio. E Beto lá ia rejubilando, de sorriso rasgado, qual jovem argentino. “É um sonho”, dizia ele. A não ida de Beto para o Real fortalecia o central enquanto referência sportinguista de eleição. “Se ele nunca vai para o Real, é porque é mesmo do Sporting”, atiravam muitos pós modernos de bancada, sem pressentir a inacção do não empresário de Beto. Ano após ano, o central tornou-se um símbolo leonino, à frente de nomes como Sá Pinto, Tello, Pedro Barbosa ou mesmo Mário Jardel. Até que chegou o fatídico mês de Junho de 2005 e nem uma notícia. Seguiu-se Julho e Beto continuava de pedra e cal no Sporting. Nem um rumor, sequer. Nove anos depois da primeira acção de um não empresário, Beto ficava no Sporting e o estio leonino não mais foi o mesmo. Os resultados da equipa e o próprio comportamento do central falam por si. Se dúvidas havia, ficam por terra: o Sporing está como está porque, pela primeira vez em nove anos, Beto não esteve quase a ir para o Real Madrid. Tudo isto graças a uma não acção de um inempresário.



O MUNDO PÓS MODERNO DOS EMPRESÁRIOS - CASE STUDY # 1
por Augusto Justo, Joalheiro

De Damian Alcides Bazan pouco se sabe. Médio volante argentino de obscura reputação, terá nascido em Buenos Aires, a 12.8.1967. A sua carreira, segundo rezam os cronistas, será quase tão sibilina como a sua própria personalidade. Bazan, esforçado tecnicista, terá deambulado pelos relvados do Deportivo Merlo e do Atletico Coria.
Mas o que nos leva até Merlo, Buenos Aires, e à carreira de Damian Alcides Bazan? Porque falamos dele aqui e agora? Porque sentimos, desde já, um arrepio na espinha quando ouvimos o seu nome? Não será, certamente, pelas semelhanças fonéticas com Kazan, Elia, grande mago da sétima arte. Bazan, Damian, não foi um mago da décima arte – o futebol – nem por lá andou perto.
Falamos de Bazan porque, numa tarde soalheira de Junho de 1996, Damian embarcou num avião com destino a Portugal. Ao seu lado, o confiante e sorridente empresário que, graças à sua boa agenda de contactos, conseguira que Bazan assinasse por um Sporting de Portugal. Damian Alcides, um miúdo de dezanove anos, nem quer acreditar. Vai jogar num grande de Portugal, essa vitrine encantada para o mercado espanhol e italiano. Na bagagem, leva apenas o sonho, um guia de Lisboa e a vontade de vencer.
À chegada à cidade das sete colinas, Bazan entra num carro. “Vais já treinar, miúdo”, ter-lhe-à dito o sempre sorridente empresário. A viagem tem como destino o estádio do Sporting. Bazan não esconde o sorriso inicial, que vai esmorecendo à medida que as horas passam e o estádio não aparece. Em seu lugar, o verde dos campos, o interminável verde dos campos. Horas depois, Bazan está no estádio do Sporting. Mas não do esforçado, dedicado, devoto e glorioso Clube de Portugal. Antes do sobrevivente Sporting da Covilhã. Bazan nem quer acreditar. O empresário sempre sorridente, bate-lhe nas costas. Na mão, o cheque com a comissão. Entre um continuado sorriso e um ar paternal terá dito “este também é Sporting, miúdo. E se trabalhares bem aqui, ainda podes ir para o outro”. Bazan não esconde a sua frustração. Burlado categorica e pós modernamente, permanece um ano em terras montanheiras, onde faz seis jogos e um golo pelo Sporting local. Ter-se-à lembrado, frequentemente, das palavras do seu compatriota Jorge Luis Borges: “A uno le suceden cosas y uno las va entendiendo con los años”.

13.10.05



QUARTA CARTA ABERTA A LUIZZ FLIP SCOLARI
Por Quarlos Eirós

Lipe:

Que és meu amigo, sei-o bem. Que és um realista, também o sei. Que lês este blog, estou como o outro. Agora, que a atenta leitura deste espaço influencia directamente a feitura do teu onze inicial, isso, caro Lipe, enche-me de desmedido orgulho e faz-me pensar que quer eu podia ser um bom treinador, quer tu poderias ser um grande pós moderno.
Eu não te tinha dito que com o Quim na baliza e o Miguelzinho na direita a confiança era outra? Viste o que aconteceu? As nossas quinas ontem jogaram que se fartaram, fizeram uma exibição de gala e, como diz o nosso amigo José Romão, manietaram o Alverca. E não me venhas dizer que foi o Deco, pois os mandamentos são muito claros: não se deve invocar o nome do Senhor em vão. A seiva da jogatana de ontem começou, claramente, entre os postes. Não sentes tu, caro Lipe, uma segurança incrível quando o Klein Joachim é o goleiro de serviço? Não sentes tu que, estando o famalicense entre os postes, até podes trocar duas de treta com o Murtosa ou fazer um SuDoKu que tudo se mantém sob controlo? Lipe, man, não sejas casmurro: o Quim é para ficar. Assim, sim, Quim.
Aceita os meus parabéns pela qualificação, dá um abraço ao Pauleta pelo recorde e orienta-me uns bilhetinhos do mundial para mim e para a minha Gertrudes.
Encontramo-nos no jantar de comemoração dos dois anos e quatro meses deste blog, em Novembro, no café Jonatã, em Tomar, ok?

9.10.05

NOTA PRÉVIA E CONCEPTUAL:

RICARDINA: Tentativa de defesa de Ricardo Pereira, caracterizada por uma movimentação acrobática espiralar ou parabolar em direcção ao vazio, vazio esse que o sujeito julga preenchido por uma bola de futebol, seguida de uma transmissão de responsabilidades para o elemento da defesa mais próximo. Por regra, acaba com a referida bola - invisível para o sujeito - no fundo das redes, com o riso contido dos atletas adversários e despegado do público em geral.

PAULIANA: Intervenção atabalhoada e desastrosa do defesa Paulo Ferreira, caracterizada por um passe mortalmente erróneo, um penalty absurdamente escusado ou um alheamento descabido da jogada, como se tivesse sido interpelado por uma voz divina. É sempre seguida do esgar característico de todo e qualquer ser humano quando diz ou pensa "já fiz borrada".



E ao minuto oitenta e seis o Rei, de toalha na mão, desabafou.

RICARDINAS E PAULIANAS ou DÊVÊDÊ, JÁ!*
por Quarlos Eirós, aveirense de gema (trocadilho fácil com os ovos moles)

O momento é o minuto oitenta e seis. Nuno Gomes celebra, bate com a mão no peito. O público – pouco exigente – rejubila. O close up encontra a cara de Eusébio da Silva Ferreira. Os locutores gritam “golo”. A cara de Eusébio está contraída. Nos lábios do Rei é facilmente legível um “foda-se”. É este o ponto de chegada de um dos mais fascinantes momentos da História da Pós Modernidade do Futebol. Um vernáculo bem português, dito por um dos reis de Portugal é, portanto, o corolário de oitenta e seis minutos de Pós Modernidade em estado puro, que quase fazem chorar de comoção este humilde escriba.

O “foda-se” de Eusébio é um ponto de exclamação no final de um denso exercício de estética pós moderna. Quase deixa de ser um palavrão. É o “foda-se” que todos nós dizemos quando contemplamos um Modigliani, quando ouvimos a quinta sinfonia de Mahler regida por Karajan, quando acabamos de ver o Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica.

E o que está para trás de tão pós moderna exclamação? A resposta é simples e previsível: está um dos melhores piores jogos de sempre da Selecção Portuguesa. Um épico comparável ao descalabro finlandês no Bessa, em 2002, à aparição no Coreia Japão do mesmo ano, à presença na Skydome Cup em 94, ao pós Saltillo de 87 e, claro está, ao jogo jogado em Vaduz a 9.10.2004, prontamente por nós denunciado uns dias depois.

Para trás do minuto oitenta e seis está o esplendor da mediocridade lusitana, com todas as suas defeituosas virtudes: a exacerbada confiança que nos matou contra a Grécia, a casmurrice balizar do Felizardo Scolari, a mediocridade exibicional própria de quem quer destruir a modernidade e – claro está – a impunidade com que a comunicação social trata tudo isto, apodando a exibição de “menos conseguida” e reforçando a ideia do “ o que interessa é O Pontinho”. Já para não falar do claro exemplo do árbitro cegueta que, ao não assinalar a penalidade óbvia, pós-modernizou ainda mais este jogo. É por tudo isto que nos juntamos a Eusébio e ao seu vernáculo. Também nós sentimos a densidade artística e filosófica daqueles oitenta e seis minutos.

Como toda a gente sabe, este é um daqueles jogos em que ganhar por menos de três é derrota. E foi isso que não aconteceu, saplicado de momentos de pós modernidade exacerbada, barroca e rocócó. Em primeiro lugar, Ricardo Pereira, o Aviário do Montijo: tem a tranquilidade mental de um Charles Manson ou até de um Roman Duris em De Tanto Bater o Meu Coração Parou. E depois – mais um facto pós moderno – culpa sempre os defesas: foi assim há um ano, foi assim no Euro, é assim no Sporting. As suas “Ricardinas” começam a ser um clássico nos jogos em que temos o privilégio de o ver jogar. Divertem o mais sisudo dos espectadores. Aliás, sorrisos são visíveis na bancada por trás da sua baliza depois do brinde dado a Fischer. Reformula-se o que se escreveu há um ano: “Ricardo reconfirmou, ad eternum, um lugar na História e medalha de ouro naqueles momentos de ridículo desportivo que passam sempre a trinta e um de Dezembro”. Ao analisarmos os frangos deste grande Pós Moderno claramente constatamos que os tem vindo a sofrer de um modo cada vez mais depurado, mais risível e mais barroco. Ainda por cima, o Roy dos frangos sofre-os sempre contra o Lieschtenstein. E já se sabe que não há coincidências: Ricardo não gosta de pop art.

Depois, seguem-se as “Paulianas” de Paulo Ferreira, um lateral direito que, cada vez que põe as quinas ao peito, treme como um bom flan da Suissinho. Após a “Pauliana” no jogo de abertura do Euro, depois da “Pauliana” da Eslováquia, eis a reafirmação de uma fórmula no jogo de ontem. Parecia que alguém lhe gritou que um poste de iluminação se desprendeu e que o ia atingir. Ou que, qual irredutível gaulês, ia levar com o céu em cima da cabeça. Hilariante.

Posto isto, segue-se a musa inspiradora dos poemas recentes do candidato Alegre: Luis Figo. Faz lembrar a música dos Mão Morta, poemada por Heiner Muller: Arrastando o Seu Cadáver. Como percebo de futebol e de filosofia, antes do penalty falhado vociferei que é incompatível pôr um ordenado de cem mil contos em moeda antiga a marcar um penalty a um ordenado que não deve ultrapassar os quinhentos euros em moeda nova. Há aqui um hiato que faz com que a bola suba demasiado. E isso foi o que se verificou.

Ao longo de oitenta e seis minutos assistimos a disparates situacionistas capazes de fazer corar Guy Dèbord. O clamoroso falhanço do Lieschtenstein, em que a bola só não entra porque um avançado do principado substitui o inefável Labrecas é um desses momentos. O próprio golo de Nuno Gomes, com a bola a passar sabe-se lá por onde e a tabelar sabe-se lá em quem, é outro. Mas, caros leitores, o mais pós moderno disto tudo estava para vir, mesmo depois do “foda-se” aliviado do Doutor Eusébio: a psicologia ainda há de explicar o porquê de tantas e tão efusivas comemorações, aliadas a um não corar por parte dos jogadores e responsáveis portugueses. Qual Mike Tyson a derrotar à rasca o grande Miguel Guilherme (magro e não boxeur) e a gabar-se de tão grande feito.

Enfim, para a memória, aqui ficam os factos de uma noite cintilante de pós modernidade, ocorrida na Veneza portuguesa. As análises pós filosóficas ficam a cargo de cada um. Prometemos publicar as três melhores. Mais do que ler teorias e ensaios, as gerações vindouras devem ver e rever este jogo para compreenderem o que é o pós modernismo no futebol.
Para já, fica a nossa mais que legitima reivindicação: editem este jogo em DVD. Nós apoiamos incondicionalmente e até já fizemos a capa.

4.10.05

O FUTEBLOG TOTAL tem a honra e o desmesurado orgulho de apresentar - à consignação da Sporting SAD - o maior ensaio de todos os tempos sobre a pós modernização do Sporting: depois da leitura destas linhas, nada será como dantes. (Ensaio Claramente Candidato ao Prémio Stromp)


Pelo PROFESSOR DOUTOR por extenso e em maiúsculas O. LEGÁRIO BEMPARENÇA

PESEIRO E O PRINCÍPIO DA REALIDADE: A NÃO CONSUBSTANCIAÇÃO DO DESEJO NARCÍSICO.



“ (…) Rossi quebrou o longo jejum de golos logo aos cinco minutos. Volvidos sete minutos, Sócrates igualou a partida. No entanto, Rossi estava inspirado e voltou a marcar, aproveitando da melhor maneira um erro defensivo dos brasileiros. Bastava o empate ao Brasil para assegurar as meias-finais e quando Falcão fez o 2-2, parecia que esse objectivo iria ser atingido. Puro engano, pois a 16 minutos do término do jogo, Rossi assinou um "hat trick". Depois, a grande actuação do guarda-redes Dino Zoff permitiu à Itália conservar a vantagem até ao final da partida.”

in www.uefa.com

Qual encenação sob pano verde de uma tragédia grega, o recordar dessa épica tarde de 5 de Julho de 1982, no estádio Sarriá em Barcelona, serve como exemplo pictórico de um dos fundamentos essenciais que norteiam o funcionamento humano e (como adiante se vai procurar demonstrar) bem como o desporto-rei: o princípio da realidade.

Muitos olham Sigmund Freud como o autor da “terceira ferida narcísica” no Homem, depois de Copérnico ter demonstrado que a Terra não era o centro do Universo e de Darwin ter questionado a nossa ascendência divina. Por sua vez, o psiquiatra austríaco defendeu a ideia de que todos tínhamos um “universo secreto”, um local ao qual não teríamos acesso a não ser através de sonhos ou da psicanálise – o inconsciente (numa segunda fase, passou a denominar-se Id). Freud advogava igualmente que o ser humano se regia por dois princípios essenciais, eternamente em conflito: o princípio do prazer e o princípio da realidade.

De um modo geral, o princípio do prazer é governado pelo Id, a nossa instância psíquica mais primitiva, que luta pelo nirvana em termos de satisfação dos desejos (as pulsões). No extremo oposto, encontramos o princípio da realidade, em que as imposições da sociedade (incorporadas na instância do Superego), obrigam o Ego (a instância psíquica mais ligada ao consciente) a uma frustração de todos os nossos desejos mais íntimos e impossíveis de realizar. Nesse sentido, já podemos situar o exemplo que abriu esta missiva: a selecção brasileira de 1982, onde militavam nomes como Zico, Sócrates ou Falcão, foi (e ainda é) o maior expoente do futebol regido pelo princípio do prazer. No pólo oposto está a Itália de Rossi e Zoff, o paradigma perfeito da squadra azzurra, dominada pelo princípio da realidade.

A questão complexifica-se no momento em que, numa determinada equipa, os dois princípios entram em conflito, sem que um deles se sobreponha ao outro. A gestão de tal conflito é algo que não está ao alcance de todos. Aliás, ao longo da história do futebol, talvez apenas o “futebol total” de Michels, Cruyff e Neeskens, tenha superado tamanho dilema, fruto de uma atitude desconstrutivista perante o posicionamento de jogadores e a rigidez de esquemas tácticos, levando à criação de uma autêntica “orquestra de improvisadores”, no mais puro sentido Zorniano.



Figura 1

A incapacidade de resolver de modo satisfatório o conflito Id-Ego ilustra, na minha humilde e singela opinião, o drama vivido pelo Sporting 2004/2005 de José Peseiro (vide figura 1), uma equipa que viveu, em certa medida, sob o signo da neurose colectiva. E, mais particularmente, na pessoa do jogador Ricardo Pereira, vítima daquilo que poderíamos considerar um caso extremo de ambivalência futebolística.

A neurose surge fruto da ambivalência entre os dois princípios. E isso é notório numa equipa em que milita um jogador como Pedro Barbosa (o homem que Quinito desejou um dia ter no seu jardim a comer croissants), elemento claramente governado pelo princípio do prazer, por oposição a um Hugo, cujas limitações futebolísticas remetem de modo evidente para o princípio da realidade.

Este desequilíbrio de energias tem o seu epicentro em Ricardo, que padece da neurose de quem não consegue resolver este conflito entre duas vontades antagónicas: defender com ou sem luvas? Sair ou não ao cruzamento? Socar ou agarrar a bola? No passado dia 14 de Maio de 2005 tivemos a oportunidade de assistir, em directo, a mais um surto neurótico desse jogador que, perante a “angústia do cruzamento”, se deixa antecipar na pequena área a Luisão e, a seguir não faz melhor do que reclamar “mão” (???) e depois, já “a frio” (não o tornou mais clarividente) afirmar ter sofrido falta (indício de perturbação delirante, uma vez que Ricardo só poderia ter sido carregado em falta por uma entidade divina ou por algo apenas presente na sua mente).



Figura 2

Temos tido, ao longo dos tempos, provas irrefutáveis de que, no futebol, o princípio da realidade se sobrepõe ao princípio do prazer: na época 1964/65 o Dínamo de Bucareste subjugou, à custa de uma sólida “teia defensiva” liderada por Cornel Popa (e lançamentos rápidos para Constantin Fratila e Lica Nunweiller), a equipa do Dinamo Pitesti (vide figura 2), com nomes como Corneanu, Barbu e Dobrin, lançando esta última numa espiral descendente que apenas terminou num tristonho 8º lugar na classificação.



Figura 3

Temos ainda o recente exemplo do clássico MTK-Ferencváros da época pretérita, em que a dupla Kanta-Illés (cfr. figura 3 - o rei Illés) foi completamente manietada pelo “mural” do Ferencváros, constituído por Bognár e Vukmir. Estes dois exemplos do futebol de leste (marco fundamental em termos de pós-modernidade futebolística), separados por quatro décadas, demonstram a intemporalidade deste princípio. A época 2004/2005 do Sporting constitui mais um passo no alicerçar desta insofismável realidade, sobretudo após o episódio CSKA – em que foi notório como o contra-ataque dos russos trouxe a equipa de Peseiro, em 20 minutos, à realidade. Regido pelo prazer puro e simples, numa óptica quase diletantista, este treinador-narcísico procurou atingir a glória suprema em todas as frentes. Acabou vergado por um cruel Superego, à mão de conceptualistas cínicos como Gazzaev ou Trapattoni, vendo assim negada a consubstanciação dos seus desejos mais primitivos. Resta saber se Peseiro recuperará dessa “ferida narcísica”, ou se enveredará por uma rota destrutiva (dominada pela pulsão de morte, ou thanatos) como a do seu colega Luís Campos, o Desconstrutivista.

Tudo parece que apostou na segunda via, recorrendo a um dos mais primitivos mecanismos de defesa – a negação. Peseiro, ao procurar (nas suas palavras) um maior “pragmatismo” no Sporting, pretende ao fim de contas recalcar os seus próprios desejos libidinais de uma equipa com um futebol lascivo, quiçá luxuriante. Ora isso só pode resultar nos sintomas neuróticos que temos vindo a constatar nos últimos jogos. Todos pudemos observar o “lateral-esquerdo” Polga que, num processo de conversão histérica, deixou de saber fazer um simples corte.

Resta saber como irá Peseiro lidar com os seus fantasmas primitivos e com a frustração sistemática da sua libido perante um universo futebolístico marcado pelo pensamento Mourinhiano, novo paradigma do futebol pragmático. Citando outro pós-moderno (ainda que ligado a uma corrente menos escolástica), Jaime Pacheco, “vamos jogar ao ataque, fechadinhos cá atrás”.