NOTA PRÉVIA E CONCEPTUAL:
RICARDINA: Tentativa de defesa de Ricardo Pereira, caracterizada por uma movimentação acrobática espiralar ou parabolar em direcção ao vazio, vazio esse que o sujeito julga preenchido por uma bola de futebol, seguida de uma transmissão de responsabilidades para o elemento da defesa mais próximo. Por regra, acaba com a referida bola - invisível para o sujeito - no fundo das redes, com o riso contido dos atletas adversários e despegado do público em geral.
PAULIANA: Intervenção atabalhoada e desastrosa do defesa Paulo Ferreira, caracterizada por um passe mortalmente erróneo, um penalty absurdamente escusado ou um alheamento descabido da jogada, como se tivesse sido interpelado por uma voz divina. É sempre seguida do esgar característico de todo e qualquer ser humano quando diz ou pensa "já fiz borrada".
E ao minuto oitenta e seis o Rei, de toalha na mão, desabafou.
RICARDINAS E PAULIANAS ou DÊVÊDÊ, JÁ!*
por Quarlos Eirós, aveirense de gema (trocadilho fácil com os ovos moles)
O momento é o minuto oitenta e seis. Nuno Gomes celebra, bate com a mão no peito. O público – pouco exigente – rejubila. O close up encontra a cara de Eusébio da Silva Ferreira. Os locutores gritam “golo”. A cara de Eusébio está contraída. Nos lábios do Rei é facilmente legível um “foda-se”. É este o ponto de chegada de um dos mais fascinantes momentos da História da Pós Modernidade do Futebol. Um vernáculo bem português, dito por um dos reis de Portugal é, portanto, o corolário de oitenta e seis minutos de Pós Modernidade em estado puro, que quase fazem chorar de comoção este humilde escriba.
O “foda-se” de Eusébio é um ponto de exclamação no final de um denso exercício de estética pós moderna. Quase deixa de ser um palavrão. É o “foda-se” que todos nós dizemos quando contemplamos um Modigliani, quando ouvimos a quinta sinfonia de Mahler regida por Karajan, quando acabamos de ver o Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica.
E o que está para trás de tão pós moderna exclamação? A resposta é simples e previsível: está um dos melhores piores jogos de sempre da Selecção Portuguesa. Um épico comparável ao descalabro finlandês no Bessa, em 2002, à aparição no Coreia Japão do mesmo ano, à presença na Skydome Cup em 94, ao pós Saltillo de 87 e, claro está, ao jogo jogado em Vaduz a 9.10.2004, prontamente por nós denunciado uns dias depois.
Para trás do minuto oitenta e seis está o esplendor da mediocridade lusitana, com todas as suas defeituosas virtudes: a exacerbada confiança que nos matou contra a Grécia, a casmurrice balizar do Felizardo Scolari, a mediocridade exibicional própria de quem quer destruir a modernidade e – claro está – a impunidade com que a comunicação social trata tudo isto, apodando a exibição de “menos conseguida” e reforçando a ideia do “ o que interessa é O Pontinho”. Já para não falar do claro exemplo do árbitro cegueta que, ao não assinalar a penalidade óbvia, pós-modernizou ainda mais este jogo. É por tudo isto que nos juntamos a Eusébio e ao seu vernáculo. Também nós sentimos a densidade artística e filosófica daqueles oitenta e seis minutos.
Como toda a gente sabe, este é um daqueles jogos em que ganhar por menos de três é derrota. E foi isso que não aconteceu, saplicado de momentos de pós modernidade exacerbada, barroca e rocócó. Em primeiro lugar, Ricardo Pereira, o Aviário do Montijo: tem a tranquilidade mental de um Charles Manson ou até de um Roman Duris em De Tanto Bater o Meu Coração Parou. E depois – mais um facto pós moderno – culpa sempre os defesas: foi assim há um ano, foi assim no Euro, é assim no Sporting. As suas “Ricardinas” começam a ser um clássico nos jogos em que temos o privilégio de o ver jogar. Divertem o mais sisudo dos espectadores. Aliás, sorrisos são visíveis na bancada por trás da sua baliza depois do brinde dado a Fischer. Reformula-se o que se escreveu há um ano: “Ricardo reconfirmou, ad eternum, um lugar na História e medalha de ouro naqueles momentos de ridículo desportivo que passam sempre a trinta e um de Dezembro”. Ao analisarmos os frangos deste grande Pós Moderno claramente constatamos que os tem vindo a sofrer de um modo cada vez mais depurado, mais risível e mais barroco. Ainda por cima, o Roy dos frangos sofre-os sempre contra o Lieschtenstein. E já se sabe que não há coincidências: Ricardo não gosta de pop art.
Depois, seguem-se as “Paulianas” de Paulo Ferreira, um lateral direito que, cada vez que põe as quinas ao peito, treme como um bom flan da Suissinho. Após a “Pauliana” no jogo de abertura do Euro, depois da “Pauliana” da Eslováquia, eis a reafirmação de uma fórmula no jogo de ontem. Parecia que alguém lhe gritou que um poste de iluminação se desprendeu e que o ia atingir. Ou que, qual irredutível gaulês, ia levar com o céu em cima da cabeça. Hilariante.
Posto isto, segue-se a musa inspiradora dos poemas recentes do candidato Alegre: Luis Figo. Faz lembrar a música dos Mão Morta, poemada por Heiner Muller: Arrastando o Seu Cadáver. Como percebo de futebol e de filosofia, antes do penalty falhado vociferei que é incompatível pôr um ordenado de cem mil contos em moeda antiga a marcar um penalty a um ordenado que não deve ultrapassar os quinhentos euros em moeda nova. Há aqui um hiato que faz com que a bola suba demasiado. E isso foi o que se verificou.
Ao longo de oitenta e seis minutos assistimos a disparates situacionistas capazes de fazer corar Guy Dèbord. O clamoroso falhanço do Lieschtenstein, em que a bola só não entra porque um avançado do principado substitui o inefável Labrecas é um desses momentos. O próprio golo de Nuno Gomes, com a bola a passar sabe-se lá por onde e a tabelar sabe-se lá em quem, é outro. Mas, caros leitores, o mais pós moderno disto tudo estava para vir, mesmo depois do “foda-se” aliviado do Doutor Eusébio: a psicologia ainda há de explicar o porquê de tantas e tão efusivas comemorações, aliadas a um não corar por parte dos jogadores e responsáveis portugueses. Qual Mike Tyson a derrotar à rasca o grande Miguel Guilherme (magro e não boxeur) e a gabar-se de tão grande feito.
Enfim, para a memória, aqui ficam os factos de uma noite cintilante de pós modernidade, ocorrida na Veneza portuguesa. As análises pós filosóficas ficam a cargo de cada um. Prometemos publicar as três melhores. Mais do que ler teorias e ensaios, as gerações vindouras devem ver e rever este jogo para compreenderem o que é o pós modernismo no futebol.
Para já, fica a nossa mais que legitima reivindicação: editem este jogo em DVD. Nós apoiamos incondicionalmente e até já fizemos a capa.
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