22.11.04


Cacioli e Dinis: A sétima arte está nos relvados.

UM OLHAR DE PIMLICO
por José Meirinho, esteta viscontiano.

Estava num destes dias a preparar um ensaio sobre a influência da desmarcação circular no 4-1-3-2 queirosiano, quando me deparo com mais um spot publicitário protagonizado por essa figura pós moderna que dá pelo nome de Vinnie Jones. Este antigo skipper do Wimbledon, tornou-se na estrela do momento, aqui na velha Albion com as participações em "O golpe", "Snatch" ou "60 segundos". Questionei-me então sobre a razão pela qual a industria cinematográfica portuguesa ignora e desaproveita os ícones do pós modernismo que pululam no nosso futebol. Após uma noite mal dormida, dei por mim a imaginar que o futebol português tem sido, desde há muito, um filão inesgotável entregue à mineração furtiva de cineastas de todo o mundo.
Não haverá algo do crinisparso Dinis (ex-Beira Mar), na caracterização das personagens-tipo idealizadas por Emir Kusturica em "Gato Preto Gato Branco" e em "Underground"??
Não terá Oliver Stone, alertado para a carga dramática que envolvia os tombos dos irrequietos e martirizados avançados do Campeonato Nacional Português, enviado emissários a Portugal, em busca da queda mais convincente e que culminaria no inesquecível cair por terra do Sgt. Elias (Willem Dafoe) em "Platoon"?
Não é conhecida, por entre as vielas e becos mais recônditos de Faro, a presença de Scott Hicks - aquando de uma visita a um familiar, comerciante de artesanato regional em Porsches - nas bancadas do S. Luís que o inspiraram para o título de "Shine", em mais uma esplendorosa exibição do reluzente Cacioli, num soalheiro domingo de Setembro de 1995?
Alguém ficará admirado se num dos próximos trabalhos de Jackie Chan, este aplicar um golpe à Flávio Meireles?
Mas talvez fosse injusto dizer-se que será só o cinema a beneficiar desta relação. A própria moda tem uma palavra a dizer, como comprovam quer o efeito "Zoolander" na indumentária de Couto, Capucho, Sérgio Conceição, Caneira e de um modo geral na esmagadora maioria (ou esmagadoria, como diria Jorge de Brito) dos nossos internacionais "A", bem como o disparar do conceito de metrosexualidade no futebol português.

16.11.04


Nuno Espírito Santo: Nome de Banco, nome no banco. Amén.

FINTAR KARL MARX
por Aurárcio Mélio, economista, com a ajuda de
Morton de Natos, historiador.

Nuno Herlander Simões do Espírito Santo é mais uma das ímpares figuras que atravessam a última década da pós modernidade no futebol português. Perguntará o incauto leitor o que leva esta ágora reflexiva a tergiversar sobre esta figura translúcida?, obtendo como resposta, seca, o seguinte conceito: o materialismo histórico. Sim, é verdade. Nuno Espírito Santo representa, na arte do futebol, tudo aquilo que Marx e Engels revelaram, em 1846 na sua “A Ideologia Alemã”. Como qualquer proletário sabe, Marx desenvolveu uma concepção materialista da História, defendendo que o modo pelo qual a produção material de uma sociedade é realizada constitui o factor determinante da sua organização política. A base material ou económica é a "infraestrutura" da sociedade, que vai exercer influência directa na "superestrutura", que se traduz no conjunto de instituições políticas e ideológicas de cada época. Trocado por miúdos, die Grundidee des Historischer Materialismus ist dass die Geschichte nicht bloß eine relativ zufällige Abfolge von Ereignissen ist sondern dass sie gewissen Gesetzmäßigkeiten folgt: Als Motor der die geschichtliche Entwicklung vorantreibt werden die ökonomischen (materiellen) Umstände, und die daraus resultierenden Konflikte, angesehen. Der Historische Materialismus steht damit im Gegensatz zum hegelschen Idealismus, der Geist und Ideen als Ursprung der Geschichtlichen Veränderungen sieht, como é lógico.
E Nuno Herlander representa, na plenitude dialéctica marxista, este conceito de materialismo histórico. Ele é, ao fim e ao cabo, a antítese infraestrutural que permite a alguém ser sempre a síntese nas balizas.
Senão vejamos: formado nas escolas do Vitória de Guimarães, Nuno é lançado às feras no ano de 1994/95, pela mão de Joaquim Lucas Duro de Jesus, vulgo Quinito. Num ápice torna-se no "next big baía" do luso futebol, confirmando o seu estatuto de seleccionável, afirmando-se como um dos grandes vultos do futuro das balizas portuguesas. Em terras de Afonso Henriques conseguiu diminuir o número de síncopes cardíacas cada vez que havia um canto contra o Vitória e já não (ou ainda não) havia Neno nas saídas. Duas épocas de afirmação e um futuro risonho pela frente. Cobiçado por Porto, Sporting e Benfica, opta, com alguma lógica, pelo chamamento corunhês. Estavamos em 1996/97 e Nuno não resiste às pesetas e parte atrás de um sonho: roubar a titularidade a Petr Kouba (finalista do Euro 96) e a Jacques Song’o (mítico lion indomptable). O resultado? Um ano a ver jogos nas bancadas do Riazor, salvo honrosas e esporádicas excepções e velinhas acesas na catedral de Santiago de Compostela para o sempiterno Song’o arrumar as botas. Dois anos depois de ser por dois anos seguidos o terceiro guarda redes do Depor, Nuno começara a perder alguns dos reflexos básicos de um normal guardien de but (há quem diga que se esquecia sempre que não podia agarrar a bola com as mãos quando lhe era endossada por um companheiro de equipa com o pé). As irritantemente seguras exibições de Kouba e Song’o começavam a tornar-se monótonas e kantianas. É então que, movido pelo conceito de força de produção marxista, decide rumar ao Mérida e ao Osasuna, onde, esquecido por todos (dirigentes do Depor incluidos, que entretanto vão contratar Molina), recupera a alegria de jogar ao domingo e a tristeza de ganhar substancialmente menos pesetas do que nas terras de Crunia Maris. Uma dúvida metódica e dialéctica assola-o: "se jogo não ganho, se ganho não jogo". Nuno opta, em simetria com uma concepção materialista que fez história, pela segunda asserção: "não jogo, mas os meus cofres não páram de encher". A produção material de Nuno leva-o a concluir que as diferentes formas de estar no banco de suplentes determinam o seu ser e o pensamento do seu ser. É esta lógica de inegável proficuidade económica – numa altura em que Nuno finta Marx e adere a um capitalismo selvagem - que o faz rumar, depois de mais uma época "en el dique seco", para o banco de suplentes do Futebol Clube do Porto. Nuno tem um sonho: destronar Vítor Baía da baliza portista e da baliza lusa. Uma vez que Santiago não ouviu as suas preces aquando da passagem pela Corunha, acaba por virar-se para o S. Bentinho, talvez porque pelo menos esse tem sempre a porta aberta, nem que seja a da titualridade. Infraestruturalmente, vence tudo que há para vencer sem o menor esforço, é campeão europeu sem o ser. E no final do mês, siga para bingo. Nuno é a força de produção que permitiu a nomes como Kouba, Song’o, Molina e Baía serem os grandes guarda-redes que foram e são. Sem Nuno a oferecer-se-lhes como antítese, a esvoaçar a titularidade como a gaivota esvoaça o peixe na lota, nada disto acontecia. Daí a nossa profunda admiração por um guarda redes com nome de e para o banco, economicamente calculista, que nos últimos dez anos passou sete a aquecer bancos de suplentes de clubes grandes. Ele há predestinados. Como dizia o ditado hegeliano, "mais vale ser rico e saudável que pobre e doente".

13.11.04


Faltam a Baía os queixos de um Ricardo ou de um Moreira

CARTAS DOS LEITORES PÓS MODERNOS
A SOLUÇÃO DO MISTÉRIO BAÍA


Luciano Pacífico
, connaisseur de nomeada dos fenómenos filosóficos do nosso futebol, escreve-nos uma interessante carta que publicamos na íntegra.

Que Scolari é um realista, toda a gente já o sabe. É frequente vê-lo na Cinemateca de Lisboa a assistir às reposições dos filmes de Vittorio de Sicca. Inclusivamente, quando jantei com ele depois do Euro, no Bigodes, em Leiria, fartou-se de falar nos Ladrões de Bicicletas e do Milagre de Milão, misturando ambos com situações quer de arbitragens escandalosas e de um volte face em San Siro. Nesse mesmo jantar, Scolari deixou cair o véu sobre o mistério da não convocação de Vítor Manuel Martins Baía para a Selecção de Todos Nós. Com meias frases, metáforas, analepses e algumas metonímias, lá foi dizendo o porquê, ao som de Toquinho e deglutindo a clássica bifana. Depois, foi apenas e só juntar as peças e construir o pâsle (puzzle de acordo com o dicionário da Academia das Ciências). Eis a minha teoria para a “inconvocação” de Baía:
Se definirmos o realismo como o movimento plástico e literário, surgido em França em meados do século XIX e que prolonga o legado do Romantismo e que retoma temas e géneros que este mesmo Romantismo já promovera, muito embora lhes subtraia a carga de idealismo e heroicização, fácil será concluir que Filipão não vai muito em estilos e estilinhos, antes prefere o proletarismo do futebolista moderno (veja-se a fixação em Maniche, Rogério Matias e mesmo até em Petit). Ora, o realismo assume e prolonga a ruptura com o academismo (recusando a representação de temas elevados, de heróis míticos, etc.), ao propor uma arte crua, despojada de artifícios, verdadeira (que pretende retratar o real tal como ele é), partindo de temas de cariz social. Ou seja, um retrato do mundo tal qual o objectivismo de um Fábio Capello o vê. Por isso, não é de estranhar que Baía, um homem que gasta centenas de contos em gel e produtos para o cabelo, bem como sofre – e cito o meu grande amigo Jorge Valdano – frangos de uma maneira muito elegante, (demasiado, diria eu) não seja convocado por um apreciador de um bom copo de três. Baía é a negação do realismo, assumindo-se como um barroco tardio ou mesmo até, na opinião de Aurárcio Mélio, como um neo-romântico na esteira de um Marc Almond (sobretudo depois de comentar um jogo do Euro vestido de fato azul bebé). Scolari depara-se, então, com o desafio de escolher uma personificação do modo de ser português e para isso recorre a uma característica física frequente neste país atlântico. Terá pensado no bigode, artefacto que ele próprio possui, logo exclui de imediato, terá pensado na calvice, recusando-a por falta de guarda redes carecas, terá também pensado na mítica unhaca crescida do dedo mindinho, de imediato excluída por ser, por regra, obstipada pela luva que o guarda redes usa. Voltas e mais voltas, decide apostar em Quim, talvez pelo nome bem lusitano que ostenta. Contudo, eis que num repente apenas e só ao alcance dos génios de olhar rapace que só o realismo consegue parir, encontra o denominador comum para as balizas portuguesas: o prognatismo.
É, então, com a maior das naturalidades que chama Ricardo, esse exemplo académico do prognata de voz fininha, é com a maior das naturalidades que se prepara para passar o testemunho a José Moreira, outro case study de guarda redes prognata. Pelo meio, há ainda a natural chamada de Bruno Vale, um prognata em ascensão no Futebol Clube do Porto, numa clara demonstração de que nada tem contra o clube da Invicta, desde que este forneça guarda redes em condições.
Poucas dúvidas restam da admiração de Scolari pelos atributos técnicos de Vítor Baía. Contudo, a sua falta de queixos foi fundamental para a sua não convocatória desde que o brasileirão assumiu o seleccionado.
O guarda redes do presente e do futuro tem de personificar um dos modos de ser português, tem que ser facilmente identificável como tal. Baía tem um estilo muito mais internacionalista e muito menos humilde que os queixos de Moreira, Ricardo e Bruno Vale.
Esta é, com humildade, a minha interpretação deste fait divers do nosso futebol.
Com subserviência me despeço,
Luciano Pacífico.

3.11.04


José Subtil Linhares: "eu não sou eu, sou o Outro".

UM DIA HISTÓRICO
por Augusto Paulo Sartre Justo

Divido os meus amigos entre os que conhecem a banda pós funk Big Boss Man e aqueles que não a conhecem. Divido os meus amigos entre aqueles que acham que a melhor versão gravada de todos os tempos do Requiem de Mozart é a do maestro Karl Böhm e aqueles que não acham. Depois do dia de ontem, dividirei todos os meus amigos entre aqueles que acham que o facto de José António Linhares se ter barricado na sede do Sport Comércio e Salgueiros é a prova viva do existencialismo pós moderno no futebol português e aqueles que apenas consideram tal acto como um fait divers. Como facilmente se conclui, eu próprio incluo-me no primeiro grupo. A História encarregar-se-á de julgar a minha razão.
José António Linhares é um génio. Não há ninguém no mundo que tenha conseguido transformar um terreno para um estádio de futebol num centro de pescas, com um lago em cujas margens as famílias passeiam tranquilas. Ao fim e ao cabo, um parque da cidade alternativo. Só por isso merecia ser Comendador.
José António Linhares terá adormecido intranquilo, há duas noites atrás. Na mesa de cabeceira, o Desespero Humano, de Sören Aabye Kierkegaard, um copo de água e dois valdisperts para ajudar a dormir. Ao fechar os olhos revê imagens da mítica época de 1991/1992 em que o Salgueiros se apura para as competições europeias. Lembra também a vitória por 4-2 ao Benfica, em 1995, na Maia, e, por fim, a queda a pique rumo à segunda bê. Mexe-se e remexe-se nos lençóis. Vem-lhe à memória o décimo golo do Vizela no passado fim de semana, o tal que o fez chorar de raiva. Num ápice, recorda, de cor, uma frase ainda quente que acabou de ler no livro de Kierkegaard: “O recusar-se a aceitar como possível que uma miséria temporal e uma cruz deste mundo nos possam ser tiradas, não será uma outra forma de desespero? É o que recusa esse desesperado, que na sua esperança quer ser ele próprio. Mas se está convencido que esse espinho enterrado na carne (caso exista de facto ou que disso o persuada a sua paixão) penetra demasiado fundo para poder ser eliminado pela abstracção, então procurará eternamente torná-lo seu. Ele torna-se um motivo de escândalo, ou, melhor, dá-lhe azo a fazer de toda a existência um motivo de escândalo. (...) Lança-se então com toda a sua paixão nesse tormento, que acaba de se tornar num raivar demoníaco.”
Linhares cogita em torno dessa frase, lembra-se que deixou uns papéis na sede e decide fazer valer o seu amor, desespero e paixão pelo Sport Comércio e Salgueiros. No dia seguinte, e sempre com as palavras do filósofo dinamarquês a ecoarem na sua cabeça, entra de rompante na sede do Salgueiros de modo a por tais asserções kierkegardianas em prática. São 9.30 e afinal é ele que manda. Pensa que Kierkegaard podia vender camisolas, seria um grande nº 10, pensa em Vidal Pinheiro, em Manuel Subtil e na Comissão Administrativa que nega conhecer. Ali está ele, fechado, aos olhos do mundo, trauteando o refrão do hino do clube, “Salgueiros/ meu Salgueiros/ Ontem hoje e sempre/ Tu serás o mais bairrista/ Salgueiros, meu Salgueiros/ Vive no peito da gente/ Sempre a alma salgueirista”. A alma toda nos olhos pesados, uma escandaleira quase a tornar-se numa peixeirada épica, a vontade de ir ao fundo com o navio já afundado. Eis-nos em frente à plenitude do existencialismo aplicado ao futebol, na sua vertente kierkegardiana: o pior dos desesperados será aquele que nenhuma consciência tenha do seu próprio desespero, a ponto de questionar se será lícito dar-lhe esse nome. Aí se incluem todos aqueles que vivem uma existência de distanciamento de si mesmos e que preferem muitas vezes manter-se na ilusão em que se encontram, na ilusão eterna de serem presidentes do Salgueiros. Quinze horas depois, sai sob escolta policial e regressa a casa. Barricado de cordel, janta um naco de novilho na pedra e vê os resumos da Champions. “Faltou-me dizer que mandava a sede pelos ares se não continuasse presidente”, terá pensado entre duas baforadas num charuto. Linhares era um homem só, que acabara de dar o passo decisivo rumo ao reconhecimento de uma corrente existencialista pós moderna, da qual ele lançara a semente, na pele de chefe do departamento de futebol, há quase dez anos, ao conseguir vender Vinha ao FC Porto. O futebol português é desde ontem um futebol diferente.
Obrigado, José António Linhares.