13.11.04


Faltam a Baía os queixos de um Ricardo ou de um Moreira

CARTAS DOS LEITORES PÓS MODERNOS
A SOLUÇÃO DO MISTÉRIO BAÍA


Luciano Pacífico
, connaisseur de nomeada dos fenómenos filosóficos do nosso futebol, escreve-nos uma interessante carta que publicamos na íntegra.

Que Scolari é um realista, toda a gente já o sabe. É frequente vê-lo na Cinemateca de Lisboa a assistir às reposições dos filmes de Vittorio de Sicca. Inclusivamente, quando jantei com ele depois do Euro, no Bigodes, em Leiria, fartou-se de falar nos Ladrões de Bicicletas e do Milagre de Milão, misturando ambos com situações quer de arbitragens escandalosas e de um volte face em San Siro. Nesse mesmo jantar, Scolari deixou cair o véu sobre o mistério da não convocação de Vítor Manuel Martins Baía para a Selecção de Todos Nós. Com meias frases, metáforas, analepses e algumas metonímias, lá foi dizendo o porquê, ao som de Toquinho e deglutindo a clássica bifana. Depois, foi apenas e só juntar as peças e construir o pâsle (puzzle de acordo com o dicionário da Academia das Ciências). Eis a minha teoria para a “inconvocação” de Baía:
Se definirmos o realismo como o movimento plástico e literário, surgido em França em meados do século XIX e que prolonga o legado do Romantismo e que retoma temas e géneros que este mesmo Romantismo já promovera, muito embora lhes subtraia a carga de idealismo e heroicização, fácil será concluir que Filipão não vai muito em estilos e estilinhos, antes prefere o proletarismo do futebolista moderno (veja-se a fixação em Maniche, Rogério Matias e mesmo até em Petit). Ora, o realismo assume e prolonga a ruptura com o academismo (recusando a representação de temas elevados, de heróis míticos, etc.), ao propor uma arte crua, despojada de artifícios, verdadeira (que pretende retratar o real tal como ele é), partindo de temas de cariz social. Ou seja, um retrato do mundo tal qual o objectivismo de um Fábio Capello o vê. Por isso, não é de estranhar que Baía, um homem que gasta centenas de contos em gel e produtos para o cabelo, bem como sofre – e cito o meu grande amigo Jorge Valdano – frangos de uma maneira muito elegante, (demasiado, diria eu) não seja convocado por um apreciador de um bom copo de três. Baía é a negação do realismo, assumindo-se como um barroco tardio ou mesmo até, na opinião de Aurárcio Mélio, como um neo-romântico na esteira de um Marc Almond (sobretudo depois de comentar um jogo do Euro vestido de fato azul bebé). Scolari depara-se, então, com o desafio de escolher uma personificação do modo de ser português e para isso recorre a uma característica física frequente neste país atlântico. Terá pensado no bigode, artefacto que ele próprio possui, logo exclui de imediato, terá pensado na calvice, recusando-a por falta de guarda redes carecas, terá também pensado na mítica unhaca crescida do dedo mindinho, de imediato excluída por ser, por regra, obstipada pela luva que o guarda redes usa. Voltas e mais voltas, decide apostar em Quim, talvez pelo nome bem lusitano que ostenta. Contudo, eis que num repente apenas e só ao alcance dos génios de olhar rapace que só o realismo consegue parir, encontra o denominador comum para as balizas portuguesas: o prognatismo.
É, então, com a maior das naturalidades que chama Ricardo, esse exemplo académico do prognata de voz fininha, é com a maior das naturalidades que se prepara para passar o testemunho a José Moreira, outro case study de guarda redes prognata. Pelo meio, há ainda a natural chamada de Bruno Vale, um prognata em ascensão no Futebol Clube do Porto, numa clara demonstração de que nada tem contra o clube da Invicta, desde que este forneça guarda redes em condições.
Poucas dúvidas restam da admiração de Scolari pelos atributos técnicos de Vítor Baía. Contudo, a sua falta de queixos foi fundamental para a sua não convocatória desde que o brasileirão assumiu o seleccionado.
O guarda redes do presente e do futuro tem de personificar um dos modos de ser português, tem que ser facilmente identificável como tal. Baía tem um estilo muito mais internacionalista e muito menos humilde que os queixos de Moreira, Ricardo e Bruno Vale.
Esta é, com humildade, a minha interpretação deste fait divers do nosso futebol.
Com subserviência me despeço,
Luciano Pacífico.