28.11.05


Stevenson antecipou num século a dementia praecox de alguns treinadores.

DOUTOR JOSÉ KILL e SENHOR AI DE.
por Quarlos Eirós, aka Mad Professor

The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde foi publicado em 1886 e assumiu-se como obra ímpar de Robert Louis Stevenson. O cerne deste belíssimo livro é o modo como cada um de nós é feito de emoções e de desejos contraditórios: uns bons e outros maus. Ou seja, o Dr. Jekyll toma uma poção e transforma-se em Mr Hyde que desata a fazer o Mal. Pronto, o livro é mais ou menos isto e mete umas mortes pelo meio. Numa linha: o Dr Jekyll é bom e o Mr Hyde é mau, mas ambos são a mesma pessoa. Noutra linha, mais importante: o Dr Jekyll – cientista – inventa uma poção para se transformar no Mr. Hyde. Inventa, portanto, para fazer tudo mal.
Que tem este fantástico livro a ver com o futebol? Nada, dirá o leitor menos pós moderno. Tudo, direi eu e todos os pós modernos de bancada. Este romance - não tivesse sido escrito em plena época vitoriana - começa por ter tudo, mas literalmente tudo a ver com o próprio Vitória de Guimarães e as suas prestções nesta época. O Vitória de Guimarães é um clube peculiar. Nunca ganhou nada de importante, mas a sua massa adepta tem a estaleca de quem já foi campeão europeu pelo menos duas vezes, e seguidas. Por isso, e por costume, começam por exigir o Céu ou Las Vegas quando a equipa só pode ir até Vilar Formoso. Mas voltemos ao livro de Robert Louis Stevenson para dizer que a actual situação do Vitória Sport Club é mais ou menos uma situação "!Jekyll & Hyde", só que ao contrário. Isto é, o VSC, pelos seus paupérrimos resultados na liga, é um constante Mr. Hyde: mau, mau e mau. Na UEFA porém, bebe a poção e transforma-se num Dr. Jekyll: limpa o Wisla, é profunda, escandalosa e obliquamente gamado em S. Petersburgo depois de um bain de ballon ao Zenit local e bate categoriacamente o pé ao Bolton Wanderers, sexto da mítica Premiership. Jaime Hyde contra Jekyll Pacheco, portanto. Resta saber quando é que o Jaime Hyde larga as poções.
Falávamos e falamos do livro The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde e de outro denominador comum com o futebol português. Como há instantes escrevemos, o Dr Jekyll inventou uma poção para ficar mau. Ou seja, Jekyll era bom, bebeu o líquido vil e desatou a fazer tudo mal e mal a tudo. Que dizer, então, dos holandeses voadores que treinam duas das dezoito melhores equipas portuguesas?
Atente-se em Koeman e no onze maléfico que escalou para o jogo na casa de Paris contra o Lille, a fazer lembrar o melhor pior Benfica de sempre de Artur Jorge. Um guarda redes, oito defesas e dois avançados contra a chamada “equipeca” francesa. Este onze (Quim, Alcides, Luisão, Anderson, Rocha, Petit, Beto, Léo e Nelson; Nuno Gomes e Miccoli) entra directamente para o anuário de pós modernidades do futebol português. A antropofagia encarnada – lá está, a maldosa capacidade de o Benfica se comer a si próprio – fez-me rebolar a rir no meu sofá do Ikea. Koeman, decididamente, bebeu a poção e desatou a inventar. Padece, portanto, do complexo de Mr. Hyde. Os resultados falam por si. Faz tudo Mal. E no Ajax até era bom.
Do outro lado, temos Co Adriaanse: o ano passado, maravilhou a Europa com o futebol total do seu Alkmaar. Padeceu, apenas, aos pés de Peseiro, o que não deixa de ser pós moderno quê bê. Este ano, bebe a poção e destrói o que restava do bom Porto de Mourinho. Encosta Jorge Costa, promove Bruno Alves (sendo a promoção deste anti-craque um gesto Maldoso), encosta Postiga, embirra com Benny e o resultado está à vista: derrota com o Artmédia em casa. Mau, muito mau. Vá lá que no campeonato os efeitos da poção não se notam na tabela. Mas Adriaanse leva para casa um importante capítulo: conseguiu a proeza de perder com o Benfica em casa, algo que não acontecia desde a unificação da Alemanha. O que é mau, muito mau (a derrota, e não a reunificação).
É caso para acompanhar Stevenson e a sua capacidade de previsão, quando o escritor afirma que “from both sides of my intelligence, the moral and the intellectual, I thus drew steadily nearer to the truth, by whose partial discovery I have been doomed to such a dreadful shipwreck: that man is not truly one, but truly two." Pacheco e os holandeses que o digam.

25.11.05


"I spent a lot of money on booze, birds and fast cars. The rest I just squandered"
Simply the GEORGE BEST (1946-2005)

15.11.05



O PRIMEIRO TITULAR É PÓS MODERNO
Uma análise fria, cínica e calculista de Quarlos Eirós, o Analista.

Estou extremamente feliz com as declarações de Filipe Scolari, ao afirmar que, a sete meses do início do mundial, Ricardo, o Aviardo vai ser titular. É óptimo ter um seleccionador de ideias limpas e clarividentes. Denota-se uma crescente planificação das coisas. Os alhos e a água benta – essa descientificidade – são substituidas pela planificação a (demasiadamente) longo prazo. Sign O’ the Times, como dizia o Prince. Conforta-me saber que, seguramente, Eriksson, Mourinho, Daúto Faquirá e Capello já sabem, igualmente, quem vai ser o lateral direito das suas equipas daqui a sete meses. Situações perfeitamente normais.
Enche-me, portanto, de felicidade o facto de Scolari já ter escolhido Ricardo, O Aviardo – e melhor, já lhe ter ofertado a titularidade como quem me oferece um cheque disco. E esta felicidade projecta três corolários que passo a explanar:

Primus – quem sai a ganhar no meio disto tudo, é o Futeblog Total e a Pós Modernidade. Com efeito, a escolha do Galo do Montijo assegura a todos os pós modernos de bancada que o seu primus inter pares vai estar presente no Mundial. O primeiro convocado e o primeiro titular da baliza das Quinas é um Pós Moderno de excelência e isso só nos pode deixar orgulhosos e esperançosos em mais um World Cup cheio de momentos Pós Modernos. Ao fim e ao cabo, disso depende a vida deste blog.

Secundus – A presença do Aviário do Montijo nas redes portuguesas no Deutschland 06 enche-me, igualmente, de felicidade pelo facto do titular ser ele: o propriamente dito, o homem enquanto zöllen kantiano. É que podia perfeitamente ser um Pacote de Leite Meio Gordo da Mimosa o dono da baliza e objecto da protecção do seleccionador. E aí a coisa complicava-se. É que o Aviário é melhor que o Pacote de Leite Meio Gordo da Mimosa a defender. Ainda bem que o Scolari decidiu delfinizar o Aviardo e não outra coisa qualquer. Ao menos, o titular da baliza da selecção é humano e mexe-se, o que só demonstra a inteligente escolha do seleccionador. Já imaginaram se Scolari se mantinha intransigente e fazia toda esta novela em torno de um Pneu Dunlop de Bicicleta? E em torno de uma Garrafa de 1 Litro de Compal Nectar Morango?

Tertius – A insistente escolha de Ricardo, conjugada com os pontos Primus e Secundus, traduz-se na inquívoca comprovação da existência de delfinados e protectorados - e consequentemente, de delfins e protegées - no futebol português. E Ricardo Pereira é, actualmente, o expoente máximo desse delfinismo. O modo como é protegido chega, por vezes, a roçar o dadaísmo. O Aviário do Montijo tem a certeza absoluta que – e perdoe-se a grosseria maldororiana da imagem - mesmo perdendo um braço e ficando cego ou, alternativamente, engordando sessenta quilos, continuará a merecer a confiança do seleccionador, do presidente da federação e daquela cambada de seguidistas que estoira rios de dinheiro em outdoors gigantes e autocaravanas para apoiar o Galo do Montijo. Mesmo que anuncie o fim de carreira, Scolari chamá-lo-à. Mesmo que a idade não perdoe e os netos não aconselhem, Ricardo continuará a ser convocado. E pior: a achar que merece ser convovado.

Estamos, portanto, na presença do maior protegido de todos os tempos do lusofutebol, perante um caso de um jogador que tem mais margem de pós-modernidade que os outros. Pode errar, enterrar, enrodilhar e enrolar, que todos saem em defesa da dama do Montijo. Posto isto, dou graças ao Senhor que Ricardo não seja controlador de tráfego aéreo ou cardiologista e que se resuma à prática do futebol, essa tarefa que, segundo Autuori “é a coisa mais importante das coisas menos importantes das nossas vidas”.

8.11.05


V de Vítor.

UMA TRANQUILA BAÍA
por Augusto Justo, fozeiro

Quando leccionava na Universidade do Porto, costumava promenadear-me pela casa de chá do meu amigo Álvaro Siza Vieira, em Leça da Palmeira. Numa fria e solarenga tarde de inverno Atlântico, ali experimentava a erudição de um bom Pu-Ehr, acompanhado pela leitura de “Trabalhar Cansa” do grande Cesare Pavese, quando um miúdo de doze anos se acerca de mim e me diz: “Belo livro, caro senhor. Acaso já leu, do mesmo autor, “A Praia”? Contém uma passagem belíssima na última página, que cito de cor: “nada é mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz”. Fiquei pasmado e perguntei-lhe como se chamava. Respondeu-me o petiz: “Vítor Manuel, senhor”. “E o que queres ser quando fores grande?”, retorqui eu. A sua resposta ainda hoje ecoa na minha memória como os sinos da Igreja da Natividade, em Moscovo: “Quero ser guarda – redes”, respondeu o jovem Vítor com prontidão. Face ao espanto da sua resposta, apenas lhe consegui dizer “puto, hás-de ser um guarda-redes culto. E como há poucos assim, ainda te arriscas a ser o melhor. Continua a ler e a escrever, mas tem cuidado com as saídas da área”. Anos mais tarde, encontramo-nos no Razzmatazz em Barcelona. E Vítor, já homem, disse-me que as minhas palavras ainda hoje lhe ecoam na memória como os sinos da Igreja da Natividade, em Moscovo.
Porque é que Vitor Manuel Martins Baía merece uma referência neste antro crítico de pós modernidade? Será pelo facto de só ter defendido um penalty na sua carreira, em 2000, ao serviço de Portugal, contra a Turquia? Será pelo fato azul bébé com que apareceu a comentar um jogo do Euro, em Leiria, para a TVI? Será porque já teve alguns penteados azeiteiros? Será por já ter ido jogar de laca no cabelo? Ou pelo chapéu de Poborsky? Será pelo facto de ninguém saber se ele não sabe porque não vai à Selecção quando merece? Será por ter ido quando não merecia? Sim. É por estas razões e por muitas outras que Baía merece uma referência neste espaço, no dia em que lança a sua autobiografia. Vitor Baía merece estar aqui porque é, no entender da escola italiana, um calciattore bravíssimo. E o Futeblog-Total, quando se trata de nivelar por cima, recorre a estes exemplos de profissionalismo, desportivismo, entrega e amor a um clube. Paulo Sousa jamais estaria aqui por estas razões, Rui Costa é naquela, Jorge Costa é demasiado grunho e pós moderno para tanto e de Paulinho Santos nem quero ouvir falar. Só Veloso, Sá Pinto e Oceano, para parificar com exemplos mais recentes, mereciam um poste destes. E Hélio, esse merecia um blog inteiro.
É, então, por essa devoção tranquila e por esse grande e vitorioso profissionalismo exemplar que lhe prestamos uma singela homenagem, dezassete anos depois daquela tarde de Setembro em que se estreou contra o Vitória de Guimarães. Porque todos nós temos, ou gostávamos de ter, um bocado de Vítor Baía dentro de nós. Aqui tornamos pública a nossa admiração pelo jogador mundial com mais títulos no curriculim (o que até é um bocado pós moderno, sendo ele português).
Relembramos a estética de algumas das suas defesas, tão elegantes como todas aquelas que o esteta Preud’Homme protagonizava, fazendo a delícia de qualquer fotógrafo desportivo. Relembramos que esteve presente naquele que é, por muitos teóricos, considerado um dos maiores jogos de futebol-arte de sempre: o Barcelona 5, Atlético de Madrid 4. Relembramos as altercações que teve com Mourinho e Pedro Morcela, o obeso dirigente do Campomaiorense. Relembramos, ainda, os braços abertos em forma de “v”, como símbolo ou marca da sereníssima triunfalidade com que celebra os golos da sua equipa. Baía é o símbolo de um campeão pensador e inteligente. E desses gostamos nós.
Ainda por cima o livro está muito bem escrito e ao contrário de tantos outros foi mesmo o próprio punho de Vítor a escrevê-lo, sem muletas de jornalistas. O que torba o redes ainda mais bravíssimo. Deixamos ao leitor esta pequena pérola que é o prólogo da sua autobiografia.
“O Mar é uma constante na minha vida: nasci ao pé do mar, cresci ao pé do mar, e tenho a sorte de, da varanda de minha casa, poder contemplar o seu imenso azul. Escolhi a profissão de futebolista por paixão, (contra a vontade até do meu próprio Pai), e porque senti que tinha nascido para isso. Contudo, fui aprendendo ao longo da minha carreira profissional que no mundo do futebol de alta competição, não existem portos de abrigo. É preciso estar sempre a navegar, e é-nos exigido que o façamos num único lugar: na crista da onda! E por isso, olhando para trás, com tudo de bom e de mau que me aconteceu, eu acho que posso resumir a minha vida, não lhe acrescentando nem menos nem mais, numa língua de Mar sem cais…”