V de Vítor.
UMA TRANQUILA BAÍA
por Augusto Justo, fozeiro
Quando leccionava na Universidade do Porto, costumava promenadear-me pela casa de chá do meu amigo Álvaro Siza Vieira, em Leça da Palmeira. Numa fria e solarenga tarde de inverno Atlântico, ali experimentava a erudição de um bom Pu-Ehr, acompanhado pela leitura de “Trabalhar Cansa” do grande Cesare Pavese, quando um miúdo de doze anos se acerca de mim e me diz: “Belo livro, caro senhor. Acaso já leu, do mesmo autor, “A Praia”? Contém uma passagem belíssima na última página, que cito de cor: “nada é mais inabitável do que um lugar onde se foi feliz”. Fiquei pasmado e perguntei-lhe como se chamava. Respondeu-me o petiz: “Vítor Manuel, senhor”. “E o que queres ser quando fores grande?”, retorqui eu. A sua resposta ainda hoje ecoa na minha memória como os sinos da Igreja da Natividade, em Moscovo: “Quero ser guarda – redes”, respondeu o jovem Vítor com prontidão. Face ao espanto da sua resposta, apenas lhe consegui dizer “puto, hás-de ser um guarda-redes culto. E como há poucos assim, ainda te arriscas a ser o melhor. Continua a ler e a escrever, mas tem cuidado com as saídas da área”. Anos mais tarde, encontramo-nos no Razzmatazz em Barcelona. E Vítor, já homem, disse-me que as minhas palavras ainda hoje lhe ecoam na memória como os sinos da Igreja da Natividade, em Moscovo.
Porque é que Vitor Manuel Martins Baía merece uma referência neste antro crítico de pós modernidade? Será pelo facto de só ter defendido um penalty na sua carreira, em 2000, ao serviço de Portugal, contra a Turquia? Será pelo fato azul bébé com que apareceu a comentar um jogo do Euro, em Leiria, para a TVI? Será porque já teve alguns penteados azeiteiros? Será por já ter ido jogar de laca no cabelo? Ou pelo chapéu de Poborsky? Será pelo facto de ninguém saber se ele não sabe porque não vai à Selecção quando merece? Será por ter ido quando não merecia? Sim. É por estas razões e por muitas outras que Baía merece uma referência neste espaço, no dia em que lança a sua autobiografia. Vitor Baía merece estar aqui porque é, no entender da escola italiana, um calciattore bravíssimo. E o Futeblog-Total, quando se trata de nivelar por cima, recorre a estes exemplos de profissionalismo, desportivismo, entrega e amor a um clube. Paulo Sousa jamais estaria aqui por estas razões, Rui Costa é naquela, Jorge Costa é demasiado grunho e pós moderno para tanto e de Paulinho Santos nem quero ouvir falar. Só Veloso, Sá Pinto e Oceano, para parificar com exemplos mais recentes, mereciam um poste destes. E Hélio, esse merecia um blog inteiro.
É, então, por essa devoção tranquila e por esse grande e vitorioso profissionalismo exemplar que lhe prestamos uma singela homenagem, dezassete anos depois daquela tarde de Setembro em que se estreou contra o Vitória de Guimarães. Porque todos nós temos, ou gostávamos de ter, um bocado de Vítor Baía dentro de nós. Aqui tornamos pública a nossa admiração pelo jogador mundial com mais títulos no curriculim (o que até é um bocado pós moderno, sendo ele português).
Relembramos a estética de algumas das suas defesas, tão elegantes como todas aquelas que o esteta Preud’Homme protagonizava, fazendo a delícia de qualquer fotógrafo desportivo. Relembramos que esteve presente naquele que é, por muitos teóricos, considerado um dos maiores jogos de futebol-arte de sempre: o Barcelona 5, Atlético de Madrid 4. Relembramos as altercações que teve com Mourinho e Pedro Morcela, o obeso dirigente do Campomaiorense. Relembramos, ainda, os braços abertos em forma de “v”, como símbolo ou marca da sereníssima triunfalidade com que celebra os golos da sua equipa. Baía é o símbolo de um campeão pensador e inteligente. E desses gostamos nós.
Ainda por cima o livro está muito bem escrito e ao contrário de tantos outros foi mesmo o próprio punho de Vítor a escrevê-lo, sem muletas de jornalistas. O que torba o redes ainda mais bravíssimo. Deixamos ao leitor esta pequena pérola que é o prólogo da sua autobiografia.
“O Mar é uma constante na minha vida: nasci ao pé do mar, cresci ao pé do mar, e tenho a sorte de, da varanda de minha casa, poder contemplar o seu imenso azul. Escolhi a profissão de futebolista por paixão, (contra a vontade até do meu próprio Pai), e porque senti que tinha nascido para isso. Contudo, fui aprendendo ao longo da minha carreira profissional que no mundo do futebol de alta competição, não existem portos de abrigo. É preciso estar sempre a navegar, e é-nos exigido que o façamos num único lugar: na crista da onda! E por isso, olhando para trás, com tudo de bom e de mau que me aconteceu, eu acho que posso resumir a minha vida, não lhe acrescentando nem menos nem mais, numa língua de Mar sem cais…”
1 Comments:
Muito bem escrito e JUSTO !
Bem haja!
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