12.8.03

CARTAS DOS LEITORES PÓS MODERNOS (2)

Carta de Lippi Marques, treinador de futebol.

Caro Prof. Quarlos Eirós:

É com grande emoção e todo o respeito que lhe escrevo, sabendo que me dirijo
a um monstro sagrado do desporto em Portugal, na Europa em particular.

O seu artigo COMO TORNAR-SE NUM TREINADOR DE FUTEBOL DE TOPO EM 4 LIÇÕES
despertou em mim algumas perplexidades, que gostaria de ver esclarecidas:

a) no que toca ao vestuário, como deve estar ciente, eu experimentei alguma
transição derivado da minha passagem pelo Inter de Milão, quando deixei o
Juventude Caxineira na época de 1999/2000. Apesar de ter optado pelo estilo
Armani, verifiquei que não fui bem sucedido (não sabia se os havia de
treinar, se lhes havia de pedir autógrafos, já dizia esse outro grande nome
do treino do futebol moderno...). Ao mesmo tempo, sabia que o fato de treino
já há muito saíra do manual de futebol do Humberto Coelho (sempre na minha
cabeceira), pelo que não seria o adequado. O que fazer?

b) ainda nessa minha passagem pelo Calcio (em que, diga-se, fui
incompreendido e cilindrado pelos grandes lobbies do futebol siciliano,
sempre avessos a um terinador arrojado e inovador em terras do Norte de
Itália), verifiquei que frases como "Entrosa, Vieri!" nem sempre surtiam o
efeito desejado. Deveria eu ter adoptado uma postura mais agressiva?

c) sempre reportando-me a essa época, tive alguns problemas no balneário
devido a uma amizade próxima com algumas esposas de jogadores. Sempre
fomentei essas relações de modo a criar bom ambiente e a evitar aos
jogadores o cansaço físico depois de estágios prolongados sem assistir às
suas cônjuges. No entanto, creio não ter sido bem compreendido por alguns
elementos mais retrógrados da equipa. Qual a sua opinião?

d) já reportando-me à minha actual situação de treinador dos "Suicidas de
Al-Aziz", gostaria de saber o motivo de ter sido mal recebido por um dos
meus pupilos o incentivo que lhe dirigi há dias: "Parece que te estás a pôr
num porco!". Será por questões religiosas, por considerarem o porco um
animal indigno?


Espero que as suas certamente esclarecedoras respostas sirvam para iluminar
as mentes dessa nova geração de treinadores que aí anda perdida e que tanto
tem a aprender com homens como V.Exa.

Sempre a considerá-lo

Lippi Marques




Resposta a Lippi Marques,
pelo Prof. Quarlos Eirós

Caro Lippi Marques:

Nem ascogita o quão agradável foi saber de si de um modo tão directo. Tenho acompanhado o seu trabalho nos Suicidas de Al Aziz, e, confesso, estou admiradíssimo com o seu trabalho. Não é qualquer um que consegue reduzir o número de suicídios por jogo de 7 para 3. Os meus parabéns por isso, e pela excelente exibição na final da Taça. Lamento o resultado, é certo, mas estou convicto que, se o seu avançado armadilhado Al Saka não tivesse explodido na cara do guarda redes, pelo menos o empate estaria garantido. Pena que a bola tenha também rebentado e, consequentemente, não entrado na cratera adversária.
No que concerne às suas pertinentes questões, devo dizer-lhe que as verdadeiras respostas estão dentro de si, Lippi. Dentro do seu eu, dentro da sua força interior, capaz de mover rios e montanhas. A nossa alma é um espaço de constante procura, de constantes interrogações. E quando encontramos as respostas, mesmo em fora de jogo, só a vitória interessa. Por isso, meu amigo, procure uma luz, a sua luz, e verá que todo o mundo se alumia, como os holofotes do Estádio Adelino Ribeiro Novo, que você tão bem conhece.
Aceite um amplexo revigorante deste seu admirador e amigo,
Quarlos Eirós.

CARTAS DOS LEITORES PÓS MODERNOS

CARTÃO AMARELO A JUSTO
por Jorge Cornuado

Não é sem alguma sensação de azia que tenho de afirmar que o tom discursivo do conselheiro Augusto Justo no artigo O Fim de um Mito (n. da r. - ver arquivos) não passa de um pastiche grosseiro, para não lhe chamar outra coisa pior. A relação entre a pilosidade masculina supra-labial e o futebol lusitano foi estabelecida pela primeira vez por Lara Tinto Correia, num célebre artigo publicado pela primeira vez na revista O Carcavelense e posteriormente reproduzido nas revistas de todo o mundo, incluindo a prestigiada New Yorker. O artigo da famosa quiróloga portuguesa intitulava-se: Vértice de Couro --- Bola, Baliza e Bigode. Este artigo, deixava às claras o que possivelmente já estaria à frente dos olhos sem que ninguém se apercebesse disso. De facto, LTC demonstrou-nos que sem bigodes não seria possível aquele futebol de "coisas bonitas" que consiste em fazer viajar constantemente a bola de pé para pé, entrando em campo somente com um ponta-de-lança. Neste futebol de bigodes, o golo é algo de supérfluo, além disso, quebra o ritmo do espectáculo, daí que é de vital importância que o ponta-de-lança jogue de costas para a baliza municiando o virtusismo técnico dos homens do meio-campo, estes por sua vez devem dar a oportunidade dos centrais e dos laterais mostrarem que também sabem jogar com os pés e transportar o jogo até ao limiar do penúltimo terço do terreno, em sucessivos dribles (basta recordar as investidas bigodianas de Humberto Coelho e de Veloso). Tinto Correia lembra ainda que o único ponta-de-lança de fartos bigodes não era português apesar de que na altura vigorava o estatuto de dupla nacionalidade. Quem não se lembra das épocas gloriosas de Paulinho Cascavel ao serviço do Vitória de Guimarães e do Sporting Clube de Portugal? No entanto, por não possuir um bigode genuinamente lusitano, Cascavel jogava de frente para a baliza e, em vez de fazer coisas verdadeiramente bonitas, fazia golos. Antes do artigo LTC todos se interrogavam, certamente também Augusto Justo, como é que um jogador de fartos bigodes podia marcar golos com tanta facilidade, agora tudo se tornou claro como água. Sim, de facto Artur Jorge rapou o bigode, mas isso não justifica que Augusto Justo omita a proveniência das suas teorias sobre o futebol lusitano. A propriedade intelectual não pode ser desrespeitada desta forma tão leviana. Desta forma, penso que não resta a Justo outra coisa senão retractar-se perante os leitores e adeptos do Futeblog Total.

Resposta a Jorge Cornuado,
por Augusto Justo

Ainda você não era pós moderno, já eu andava no mundo do futebol. Entendeu? Quanto estava o Elvas-Vitória de Guimarães, ao intevalo, época 86-87?

Professor Quarlos Eirós,
Augusto Justo &
Irmãos Monteirinho

Apresentam, a pedido de várias famílias, a republicação integral de uma obra assombrosa

COMO TORNAR-SE NUM TREINADOR DE FUTEBOL DE TOPO EM 4 LIÇÕES

Lição 1 – O Discurso Oral e a Comunicação Gestual

a) O Discurso Oral

Uma das formas para se tornar num treinador de futebol de topo está na fórmula discursiva a adoptar. Com efeito, quanto mais enigmático for o treinador, mais admirado se torna. Assim, para além dos clássicos chavões do estilo “ O futebol é composto por duas partes de 45 minutos” - “ Só ganha quem marca” e “tripodeamos o adversário, manietando-o” é necessário adoptar um léxico dificilmente perceptível mesmo para o mais entendido catedrático do futebol. Frases no género “ A minha equipa joga de acordo com as teorias mais recentes da física quântica” - “ A conjuntura dissonante apoiada numa estruturação errónea da esquemática do adversário levou-nos à desilusão” - “gosto que a minha equipa jogue um futebol lhano” - “ o futebol e a geometria são ciências conexas” ou ainda “ sei o que penso e só penso o que sei”, serão pérolas a utilizar por qualquer pretendente a treinar um grande clube. Por seu lado, a atitude a adoptar em conferência de imprensa deve ser aquela que nos mostra um treinador com o olhar colocado num horizonte lívido e distante, falando com prolongadas pausas entre os vocábulos. Para além disso, nunca esquecer de comentar o trabalho dos árbitros começando o seu discurso com a seguinte frase: “ Como todos sabem, não é meu apanágio comentar o trabalho da equipa de arbitragem, mas...”

b) A Comunicação Gestual

Um bom treinador deve aparentar ser, também, um exímio comunicador gestual:em caso de vitória, pode sempre atribuir-se os louros às indicações dadas para dentro do campo, em caso de derrota delegam-se responsabilidades na falta de compreensão, por parte dos jogadores, da sinalética que se quis transmitir. O código de sinais deve ser absolutamente imperceptível e aleatório, desde que acompanhado de um bom berro seguido por uma ou mais expressões vernaculares. Assim é indiferente movimentar os braços num eixo fora - dentro ou cima - baixo desde que se grite “Entrosa, entrosa, meu c****ho”. Todo e qualquer gesticular deve, como é óbvio, ser acompanhado de um olhar profundamente sério e concentrado.


Lição 2 – A Atitude em Campo e no Balneário

a) Em Campo

Pela postura em campo se vê a estaleca de um grande treinador. Duas são as correntes que se perfilam para que, adoptando uma delas, se torne num ídolo das multidões.
A corrente Boloniana diz-nos que o grande treinador é aquele que se deve abstrair totalmente do que se passa em campo, mostrando uma arrogância técnica e moral inenarrável, quase a roçar um nauseabundo desprezo. Assim, aconselha-se o treinador de topo a fazer uma de três coisas: a levar um livro ou um jornal e desatar a lê-lo durante o jogo; se gosta de escrever, a levar uma caneta e um bloco e a alinhavar meia dúzia de versos; a passar o jogo às voltas ao banco dos suplentes a falar ao telemóvel, gesticulando abundantemente.
A corrente Pachequista propõe exactamente o oposto, ou seja, entregar-se ao jogo de um modo muito próximo de quem está a ser possuído por belzebu. Gesticule, berre, exaspere, dê pontapés no treinador adjunto sempre que a sua equipa sofre um golo, ajoelhe-se e reze, sempre que o árbitro toma a decisão contrária à que deseja, coma relva cada vez que ganha um canto, insulte o público adversário colocando as mãos nas partes pudibundas e, sobretudo, seja espalhafatoso.

b) No Balneário

Um bom treinador é, sobretudo, um ser superior e um bom psicólogo. Logo, a atitude a tomar para com o séquito de futebolistas que o seguem deve ser a de uma superioridade bem próxima do ser metafísico, acoplada de bojardices dignas de um bom tasqueiro. Para a primeira vertente, sugere-se o lançamento de boatos, do estilo “ouvi dizer que o Mister – nome pelo qual deve, indubitavelmente ser apelidado – dorme uma hora por dia” ou “ correm rumores que o Mister se vai fechar num mosteiro para estar em regime de silêncio durante as férias” são dois excelentes exemplos, sobretudo quando acompanhados de ordens de comando de difícil percepção para os ordenados: em vez de se dizer “ Jogar ao Meio” deve dizer-se “ Colocação em circunferência dos elementos intervenientes com circulação de bola motivada pela fuga à intercepção por um elemento perturbador”. Quanto às bojardices, nada melhor que o clássico apelidar o grupo de trabalho de “manada de filhos da p**a!”. A psicologia de grupo é fulcral para que se possam praticar estas liberalidades, devendo, portanto, adoptar-se atitudes comportamentais que fortaleçam o espírito de união do grupo de trabalho, como por exemplo, fazer-se uma roda em torno do meio campo, entrar em campo de costas ou obrigar o grupo de trabalho a deixar crescer o bigode.


Lição 3 – O Pronto a Vestir e as Superstições

a) O Pronto a Vestir

As exigências do futebol moderno fazem com que os treinadores sejam vistos como os últimos dos gentlemen do futebol. Assim, nada melhor que aparecer vestido como se fizesse parte do grupo de manequins da Armani: fato preto, gravata ou lacinho da cor do clube e sapatos castanhos de camurça são a indumentária ideal. Se quiser arriscar um pouco, substitua a camisa por uma camisola de gola alta. Aconselha-se a meia semi transparente preta, em detrimento do fato de treino (kispo incluido): absolutamente out of fashion. Acresce, ainda, um estilo a implementar, ou seja, um conjunto de códigos e sinais que fazem de si um treinador com identidade, com a mística dos grandes nomes. Assim, sugerimos, para a afirmação da sua identidade enquanto treinador, que use um sinal distintivo de todos os seus colegas. Exemplos a seguir: uma cigarrilha, gel no cabelo, relógio Raymond Weill, sacudir repetidamente a lapela do fato, etc.etc.

b) As Superstições

O verdadeiro mister tem que ser supersticioso, variando, em função da natureza de cada um, o grau de superstição que se aparenta possuir. Assim, para os que querem passar a imagem de um treinador fervorosamente místico, nada melhor que trazer um galo preto para o banco dos suplentes preso por uma trela ou uma imagem de Nossa Senhora em tamanho 1/1, sentada no lugar do treinador adjunto. Para os menos místicos, nada melhor que os pequenos rituais que aparentam ser discretos, mas que toda a gente sabe que são visíveis, desde o beijar uma medalhinha com uma discreta ostensividade, até ao dar uma volta ao banco dos suplentes ao pé coxinho, fingindo que se está manco passando pelo benzer-se noventa vezes, uma por cada minuto de jogo.


Lição 4 – O Golo

A raça de um grande senhor do futebol vê-se no modus comemorandi do sal da bola: o golo. O grande senhor do futebol europeu mostra uma enervante tranquilidade cada vez que a sua equipa marca, oferecendo, ante o golo, um ar compenetrado de quem espera pelo autocarro nº 5 em frente ao
quiosque. Obviamente que a grandeza do treinador imperturbável se faz, também, por pequenos sinais, como por exemplo, o pirete dissimulado feito
para a claque adversária (ou mesmo para o camarote presidencial, em caso de jogo fora) bem como o palavrão dito em surdina ou a cuspidela de
desprezo para o lado. Só no caso de vitória no final do jogo é que o treinador de topo deve adoptar a abertura dos braços em forma de “V” e rodar
lentamente sobre o seu eixo, como que olhando olhos nos olhos toda a multidão que o aplaude. Enfim, a escolha fica à medida do grau de grandeza
que cada um quer ter.