24.7.05










O Professor Quarlos Eirós tem o prazer de terminar os trabalhos deste simpósio com uma conferência denominada

O que é a Ciência? Por Alma de Quem é que o Futebol é uma Ciência Ilógica?

Cabe-me a honra de proferir a palestra de encerramento deste magnânime simpósio. Prometo ser breve, até porque pressinto a larica desta mui nobre plateia.
Ninguém espera que um ilustre académico como eu comece uma alocução desta estirpe com uma confissão de calibre idêntico à que me preparo para fazer: durante o saudoso Euro 2000, num acto de fé e devoção, deixei crescer a bigodaça para dar sorte à Selecção Nacional. Nada de anormal, até agora. Calculo que as senhoras e os senhores aqui presentes tenham feito - ou tentado fazer – exactamente o mesmo. Acontece que, momentos antes do jogo das meias finais contra a França, perdi parte do bigode em circunstâncias que não me cumpre, neste espaço, publicitar. O resultado, foi o que se viu. Perdemos, e ninguém me tira da cabeça que, se o que me aconteceu não me tivesse acontecido, teríamos chegado à final e, quem sabe, ganho o Europeu.
Nessa mesma noite – de triste fado lusitano – a minha mulher, Gertrudes Steiner Eirós (para quem peço uma calorosa salva de palmas), recitou-me a Hermenêutica de Wilhelm Dilthey e, discretamente, dissolveu quinze xanaxs na minha habitual botelha de whisky de Sacavém. Quando saí do coma, já ela, Gertrudes, tinha regressado de férias. Mas adiante, isto também não vem ao caso.
Serve este intróito para descrever uma das minhas maiores crises científicas de sempre: eu, um homem da Ciência, um homem cujo nome do meio é “Rigor”, um vitruviano de Alfena, um herdeiro da akademische freiheit, via-me pela primeira vez, desde os tempos de liceu, de costas voltadas à Ciência que eu próprio ajudo a sistematizar, vitimado pelo Mal que ando há décadas a combater: o facilitismo e a crendice no mundo do futebol. Ora, este mundo da bola tem, definitivamente, de ser encarado como um mundo pleno de cientificidade e de rigor. Sob pena de se banalizar, deve ser olhado, de uma vez por todas, como uma Ciência.
E o que é a Ciência? Muitos de vocês dirão que essa é uma questão que perpassa a humanidade desde os tempos em que as galinhas tinham dentes, que é difícil responder e mais não sei o quê. Para mim, tudo isso são balelas. Responder à pergunta “o que é a Ciência?” é quase a mesma coisa que responder à pergunta de que côr é o terceiro equipamento do Dínamo de Zagreb: nada mais básico. A Ciência é o conhecimento teórico e universal. É a epistemologia, meus caros: observação, hipótese, experimentação e formulação de leis. E a filosofia é, logicamente, a Ciência suprema. Pronto, já defini Ciência. Pareceu difícil? Acho que não.
À definição de Ciência estão inerentes sub-definições de Unidade e de Lógica. Há, também, que distinguir os tipos de Ciências que existem por aí fora: experimentais, formais e humanas. Não vou estar aqui a defini-las uma a uma, porque o simpósio está a acabar e tenho já alguma fome. Contudo, detenho-me nas últimas, nas Ciências Humanas, para vos dizer que o seu estatuto é deveras polémico. Para os Positivistas, são efectivamente Ciências como as outras. Para Wilhelm Dilthey, as coisas já não se passam da mesma maneira. Este Klaus Augenthaller da filosofia distingue Ciências da Natureza de Ciências do Espírito, enquadrando nestas últimas as ditas Ciências Humanas e Sociais, que já não se baseiam na verificação lógica da experimentação, mas antes na interpretação das intenções humanas. Mais longe ainda vai Rufolf Carnap que, tal como Neno, Cadete e tantos outros, também tem uma escolinha. Os trabalhos da sua Escola de Viena concluem que a lógica da Ciência está suficientemente madura para se libertar da filosofia e constituir-se num domínio científico próprio. E que resta à filosofia? Apenas os problemas metafisicos: qual a causa primeira do mundo, qual a essência do nada; problemas esses que Carnap apoda de pseudoproblemas, desprovidos de qualquer conteúdo científico.
Ora, e o que é que eu tenho a dizer a estes Dilthey e Carnap? Sinceramente, digo-lhes que estão equivocados. Que se enganaram. Rio-me deles. E rio-me avançando com uma categorização que julgo, humildemente, ser a mais correcta: a que categoriza a Ciência em três ramos: o ramo das Ciências Lógicas, o das Relativamente Lógicas (ou Mais ou Menos Lógicas) e, last but not least, o ramo das Ciências Ilógicas.
Nas Lógicas, englobo as experimentais e as formais. Nas Relativamente Lógicas, as chamadas Ciências Sociais, com especial enfoque na Sociologia, no Pedicurismo e no Direito. Nas Ilógicas, englobo, entre outras, a Astronomia, a Contabilidade, a Enfermagem e o Futebol.
E por alma de quem é que o futebol é uma Ciência Ilógica? Sendo, mais uma vez, um hábil pragmático, posso afiançar-vos que talvez seja pela alma de José Romão. Depois da sua grande frase “Manietámos o Alverca”, o treinador, então belenense, justificou uma derrota inesperada com “A” frase reveladora: “jogámos melhor, tivemos mais oportunidades, dominámos o jogo, mas acabamos por perder. Sabe, isto prova que o futebol é uma Ciência Ilógica”. É palpável a colossalidade deste ensinamento de Romão: o Mestre explica a ilógica do futebol científico dizendo que a uma aplicação de um método e de um discurso científico nem sempre resulta uma verdade universal. Ou seja, observação do adversário, hipótese de exploração de deficiências no sector defensivo, experimentação nos treinos e formulação de tácticas infalíveis para o jogo e sai tudo ao contrário sem se saber porquê. Falta, portanto, o elemento lógico dedutivo para que o futebol seja uma Ciência Lógica ou Mais ou Menos Lógica. Agora, meus caros, não é por isso que deixa de ser ciência. Resta, sim – e para percebermos porque é que o futebol é verdadeiramente uma Ciência Ilógica – acrescentar um elemento à tetralogia “observação, hipótese, experimentação e formulação de leis”: o paio, a sorte do jogo, a estrelinha. É este elemento que dota o mundo da bola de uma índole ilógica. Pode parecer confuso, mas não é. Tudo isto é justificado pela inclusão do mais elementar elemento científico-ilógico: o feeling. E o feeling, tal como o futebol, é isto mesmo: eu não consigo justificar, mais do que o que justifiquei, porque é que o futebol é uma Ciência Ilógica. Mas tenho um feeling enorme que é por causa disto que acabei de explicar.
Pelas vossas caras, creio estarem com fome, ou então, surpreendidos com esta teoria. Isso não me surpreende. Eu também tenho fome. Mas deixem-me terminar com uma frase pertinente, que vos deve pôr a cogitar durante os próximos meses: a sintaxe táctica é tão somente a matemática do futebol.
E pronto. Está terminada a minha alocução, está terminado este simpósio.
Obrigado pela atenção, dispenso as palmas, vamos aos morfes.