19.7.04

Rumo ao Além Pós Modernismo
 
Por Aurárcio Mélio, corrector de bolsa
 
 
Permitam-me, por gentileza, que, neste pequeno opúsculo, saia por breves instantes da quadratura circular do futebol para entrar, ao de leve, levemente, na ars magna que é a política. O denominador comum é, como claramente se infere, o novo Primeiro Ministro de Portugal.
Previamente, devo explanar que pretendo operar uma ambiciosa divisão na minha vida e na pós modernidade portuguesa: com efeito, depois da quantidade industrial de fenómenos pós modernos que ocorreram este fim de semana, esta divisão não tão só tem que ser reconhecida – uma vez que ela já existe à priori – como tem de ser incluída nos compêndios e transmitida às gerações vindouras e vitivinícolas.
- Ora, perguntará o atento leitor, mas afinal, o que se passou este fim de semana?
- Ora, respondera o humilde escriba, neste fim de semana passou-se do Pós Modernismo ao Além Pós Modernismo.
- E porquê, senhor Doutor Professor Mélio? Replicará o atento leitor.
- Porque a quantidade de númenos e fenómenos pós modernos foi tanta que “as coisas” não ficaram iguais, treplicará o cronista.
- Ah sim?
- Sim
.
 
Comecemos.
Sábado, 17 de Julho
Na ressaca do cancelamento do concerto do meu grande amigo David Jones no estádio do Dragão, o XVI governo constitucional toma posse. O novo Primeiro Ministro abre a sua legislatura com um discurso diasloureiramente extenso e, usando a célebre táctica da catanada paginal, vai abatendo páginas atrás de páginas, lendo apenas um parágrafo por cada 4. O resultado, para além de discursivamente imperceptível – será Santana um desconstrutivista? (ficamos a saber que a retoma vem aí – silêncio- vamos cumprir o programa- silêncio- mas a segurança é um problema) é confrangedor e além pós moderno. Quanto mais não seja porque Sampaio quis chorar e não conseguiu.
 
Sábado 17 de Julho (2)
Telmo Correia, ministro do Turismo, demonstra que ainda antes do governo começar, a desunião faz a força. Em entrevista à SIC:
-  Está preparado para ir para o Algarve com o seu ministério?
- Algarve? Algarve só de férias. E este ano não vou.
 
Sábado 17 de Julho (3 - devia ser feriado para filósofos como nós)
O Benfica inicia a época no já clássico jogo contra aqueles amadores-suíços-que-apanham-sempre-14-0-mas-a-quem-os-encarnados-ganham-sempre-1-0-à-rasca-o-que-prenuncia-que-ainda-não-é-desta. Com as dificuldades do costume – ver o SLB jogar é semelhante a ver cinema neo-realista italiano, contemplativo esperançoso das dificuldades da vida e da infelicidade anunciada  (cfr, por todos, Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sicca) – a turma de Trap lá chegou ao 2-0. Não é o jogo que interessa, nem a batatada monumental que se seguiu, provocada pela imbecilidade de uma empresa de segurança e pelas saudades da idade média da comunidade portuguesa em terras helvéticas. Duas notas seminais no trilho da além pós modernidade interessam registar:
Primus – a reviravolta no batatatal começa no exacto momento em que um adepto do FC Porto entra em campo e qual Costinha, alivia a cabeça de um segurança – entretido em esmagar, com um cassetete, o indefeso rim de um adepto segurado por três matarruanos-  para canto.
Corolário: lá fora somos todos portugueses, o euro ainda vive em nós, a bandeira tem sete castelos.
Secundus: Giovanni Trapattoni estava incrédulo com o que se passava ante seus olhos. Foi a sua praxe, a sua iniciação ao futebol português. Ter-se-á lembrado da sua terra natal, dos brioches comprados na pastelaria em Turim, dos Rio Grande, que ele tanto gosta, e daquela interessante canção “tomar em consideração/ se isto é assim no Verão/ o que será no Inverno”.
Corolário: Che cazzo ci sto facendo qui ?
 
Domingo 18 de Julho
Ricardo, o semi-frio do Montijo, herói e vilão para todos nós, apresentou um livro, que não foi escrito por ele, mas que foi ele que o escreveu. Surrealismos à parte, em continuidade neo kantiana, Ricardo é convidado para dar uma entrevista ao lendário Bento Rodrigues, jornalista da SIC.
Qual cão da morte a bafejar no meu pescoço, Bento lança-se a Ricardo com a seguinte e inaugural questão:
- No livro que escreveu, diz que cortou relações com Vítor Baía, depois de uma entrevista dada por este, em Julho de 2003.
- Boa noite. Bem, isso não é bem assim. O Ricardo não corta relações com ninguém.
- Peço desculpa, Ricardo, mas isso está aqui escrito.
- Bem, o que está escrito, está escrito. Se bem que não fui eu quem escreveu isso.
 
Depois deste grand finale, só me resta comer, de rajada, um quilo de cerejas da Cova da Beira e ir jantar com o meu amigo Johann Cruyijf a Sitges. Ouvi dizer que as bifanas lá são deliciosas.  Para trás ficou um verdadeiro fim de semana lusitano.