A POESIA ESTÁ NOS RELVADOS
por Augusto "Prado Coelho só que menos volumoso" Justo
Artur Jorge de Braga Melo Teixeira. O Rei Artur. Le Roi de Paris. O Defenestrador da Luz. Um nome que, para todos aqueles que se debruçam sobre as varandas inclinadas da voragem galopante da pós modernidade no futebol, dispensa qualquer tipo de apresentações. Um autêntico homem vitruviano, um renascentista totalizante, aglutinador do tríptico “um melómano, um poeta, um treinador de futebol.”
Artur Jorge é um autêntico ying yang, um homem hegeliano em cuja tese reside a própria antítese que há-de florescer síntese. O que ganhou no FC Porto, perdeu no Benfica. O que o projectou no Paris Saint Germain, desprojectou no CSKA, enublou-se em França, no Matra Racing, enublou-se em Portugal, na Académica. Foi campeão europeu e não foi campeão europeu. A propósito de Cannigia e as drogas, afirmou que “todos nós temos as nossas dependências”, sobre o futebol defensivo que as suas equipas praticavam, propalou que o importante era fazer “coisas bonitas”. Teve a seu lado nomes míticos como os do Prof. Neca (também ele claramente merecedor de três ou nove posts), Raul Águas (o herói de Chaves), um tipo no Paris SG cujo nome se desconhece, mas que tinha um bigode igual ao dele e o mítico Octávio Machado.
Enfim, uma pleíade de antinomias capaz de fazer corar qualquer dialéctico. Contudo, e em primeiríssima mão, a razão deste post é trazer a lume uma análise literária ao livro de poesia (sim!) que Artur Jorge publicou: Vértice da Água. Lançado em 1983 pelas Edições O Jornal, Vértice da Água é um livro que reúne os poemas de um então debutante treinador de futebol. E logo ao entrarmos no seu corpo – do livro – ficamos com uma primeira dúvida: estaremos nós perante 96 poemas ou perante um só que se estende ao longo das 96 páginas de poesia? A subjectividade inerente a todo o discurso poético dar-nos-á a resposta.
Ao folhearmos as iniciais páginas, encontramos uma orientação programática e quase metodológica que perdurará ao longo de todo o livro. Ficamos a saber que está enfastiado e até enojado com a tendência do futebol de contenção “ Primeiro/ o conter da boca/ de rios caudalosos/ - vomitar excrementos” (pág 7), e que Artur Jorge advoga um futebol mágico, espectacular e metafórico (“são uivos de plátanos gigantes” – em clara alusão a uma defesa composta por homens com a altura de plátanos gigantes e a força de lobos) (pág 22).
Num crescente condensado de rememorações, de notas metafóricas sobre a vida dentro dos relvados, o poeta-treinador analisa alguns pontos de interesse ocorridos na sua (então curta) carreira de treinador: Uma vitória do Vitória de Guimarães em Faro é exultada com o verso “os mares são brancos em Marraquexe” (pág 33), uma derrota que quase leva ao seu despedimento, contra o Leixões, em pleno estádio do Mar é levemente abordada na frase “o mar queima” (pág 34), outra derrota comprometedora nos Barreiros é rememorada com “lembro aos berros: (...) ilhas de tragédia” (pág 41) e uma grande vitória contra o Hertha, daquelas onde se houvesse mais tempo de jogo a sua equipa chegava aos dez golos de diferença é assinalada pelo magistral “o homem teria dito mais coisas/ no teatro ao ar livre/ em Berlim” (pág 45).
Mas nem só da época futebolística em si nos fala este Vértice da Água. Antes contém as sementes de gloriosos anos vindouros: o génio, a velocidade alada e a magia de Futre são antecipados num profético “ia e vinha/ e acendia/ aos assobios/ fósforos” (pág 46), a lesão de Casagrande na campanha europeia é prevista em “Orgãos/ rompendo/por onde nada se separa/ fractura os ossos” (Pág 77).
Ficamos, também, a saber que o Poeta menospreza o Sporting (“Chegava de verde/ Quase oculto”, pág. 107), que ficava triste quando um jogador seu era expulso (“Todos os olhos caíram/ um/ a/ um/ não fora o rosto/ expulso/ de rastos” – Pág. 49), que sentia um grande apelo pelo desconstrutivismo destituído de qualquer nexo (“rebenta o cio das águas na barriga das vogais” - Pág. 94 – quereria o poeta falar do cio das Águias, numa clara alusão ao Benfica?) e que nutria um ódio visceral pelo Desportivo das Aves, propondo mesmo, sibilinamente, o seu desaparecimento enquanto colectividade: “aos pés as aves de mármore em breve extintas” (pág. 57).
Todavia, o maior destaque vai inteiramente para o poema que – reza a lenda – Artur Jorge terá lido no intervalo da final da Taça dos Campeões, poema esse alertante para os malefícios das influências dos empresários futebolísticos e apelativo à garra e entrega dos jogadores para a segunda parte do jogo. O resultado do jogo e da leitura é o que se conhece. O poema está aqui, integralmente reproduzido.
(corrida no estádio nacional)
O cão ladra
De joelhos
A coleccionadores de velhas imagens
A contrabandistas de atletas cegos
A elefantes iconoclastas nas margens
(obstinado corpo
alugado
de poderoso animal)
Em suma, mais que um livro, estamos perante um autêntico tratado sobre a inexplorada futebológica. O Vértice da Água está para esta arte futebológica como Prolegómenos de Toda a Metafísica Futura está, respectivamente, para os prolegómenos, para a metafísica e para o futuro.
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