10.7.03

REFLEXÕES SOBRE O PÓS-MODERNISMO NO FUTEBOL:
Breve contributo para o estudo do caso português


Professor Quarlos Eirós*


Se perguntarmos a três ou nove pessoas o que significa o pós-modernismo no futebol, teremos três ou nove reacções diferentes, podendo muito bem uma delas ser um bacalhau à Gomes de Sá. O pós-modernismo é um termo demasiado académico, usado pela primeira na ciência inexacta do futebol para qualificar o futebol geométrico de Lobanovsky, produto da Velha Escola da União Soviética, onde pontificavam estetas como Belanov, Khiddiatouline, Blokhine e Dasaev. Qualquer livre pensador ou intelectual de bancada sabe o que é o pós modernismo, mas não o consegue explicar por palavras próprias, muito menos o usa em casa.
Na segunda metade do século XX, o futebol começa a responder às solicitações de uma crescente sociedade de consumo. O pós guerra trouxe a revolução tecnológica e a vitória do Uruguai no mundial de 1950, energia nuclear, Di Stefano, computadores, Gordon Banks, televisão, o trinco e outras conquistas, que entravam rapidamente na vida das pessoas e passavam a fazer parte de seu dia a dia. Da mesma forma que chegavam até nós, as novidades rapidamente eram superadas e descartadas. Tudo passou guiar-se pelo efémero, sobretudo a vida de um treinador. Era a sociedade de consumo e da chicotada psicológica que surgia, ávida por novos produtos e com sede de vitórias a qualquer custo. E o futebol, enquanto arte de massas, teria de posicionar-se perante esta nova postura da sociedade.
A partir dos anos 80, motivados pelas modificações culturais na sociedade e pelo fracasso de certas obras racionalistas como a Holanda de Rhinus Michels, o Benfica de Eriksson ou FC Porto de Pedroto, alguns treinadores em Portugal começaram a questionar alguns dos dogmas modernistas. Por que não abrir mão dos elementos de ataque? O que posso conhecer? Donde vimos e para onde vamos? Por que não tornar o futebol numa arte plástica? O que há de errado com a retranca? Quanto calça Karl Popper? Por que renegar Helenio Herrera e o seu catenaccio? Com estas perguntas, começava a nascer uma nova corrente futebolística, antagónica ao modernismo: o "pós-modernismo".
Na falta de um termo melhor, a expressão pós-modernismo tentava identificar tudo o que vinha para além do modernismo. Na realidade, é tarefa árdua definir o pós-modernismo, pois frequentemente o encontramos a beber inspiração em modelos técnico-tácticos ocidentais, mesmo até nos próprios modelos modernistas, apesar de o renegarem em muitos aspectos. Em Portugal, podemos considerar como primeiros sinais sérios de pós modernismo o metafórico “deixem-me sonhar” de José Torres, antecedido pela visita transcendental do Vizela à primeira divisão na época de 84 / 85. Um exemplo de cartilha é mesmo o célebre golo de Marcelo, ao serviço do Benfica já no ano de 1996, frente ao União de Leiria: um centro atabalhoado e confuso para a pequena área, e o golo de Marcelo, o astuto ponta de lança, é marcado de cabeça a menos de 10 centímetros do chão, ficando o avançado com a cal da linha de baliza marcada nos queixos e não sendo pontapeado no crâneo por mera felicidade. Esta opção por marcar golo do modo mais bizarro e feio possível, desafiou cinquenta anos de modernismo, deixando a comunidade científica deveras incomodada com tamanha ousadia.
O treinador Jorge Jesus, um dos principais protagonistas e teóricos do pós-modernismo, traçou um paralelo de características opostas entre o pós-modernismo e o modernismo.

Pós-modernismo/ Modernismo
Complexidade, contradição/ Simplificação
1-5-1-2-1 ou 5-4-1 double volante/ 4-2-4 ou 4-3-3
Inclusividade/ Exclusividade técnico-táctica
Retranca/ Espectáculo e golos
Vitalidade emaranhada; paio monumental/ Unidade óbvia, estilo Ajax


Fica claro no paralelo traçado por Jorge Jesus a intenção de se contrapor ao modernismo, preocupação que sempre partiu dos pós-modernistas. Em geral os modernistas continuaram a seguir suas regras, jogando ao ataque e ficando no máximo espantados com as obras pós-modernas italianas e das equipas de segundo plano de Portugal. Curioso é que os ditos grandes portugueses sempre se armaram nos jogos europeus, até à brilhante prestação do F.C. Porto na Taça UEFA deste ano, em pós-modernistas.
Embora de características efémeras, com jogos muitas vezes relacionados com cenários descartáveis (a chicotada psicológica), tácticas utilizadas com meros fins de sobrevivência durante longas e penosas jornadas, o pós-modernismo teve o mérito de sacudir o marasmo que assolava o futebol moderno nos anos 60 e 70. Parecia que tudo já havia sido inventado, todos os golos espectaculares marcados e que o que se fazia era simplesmente reproduzir soluções consagradas. Os pós-modernistas não tinham medo de introduzir elementos clássicos em seus projectos, como o comprovam os típicos passes em profundidade para o terceiro terço do terreno, explorando uma situação clássica de contra ataque, e, ao constatarem a sua posição de vantagem no marcador, de imediato e paradoxalmente recorrem à clássica charutada para atirar a bola para fora do estádio: misturas aparentemente absurdas, mas feitas com o intuito de instigar o espectador a questionar-se e a posicionar-se em torno do que acabara de observar, reagindo com aplausos ou vaias e arremesso de objectos para dentro do relvado. O pós-modernismo é intencionalmente polémico e, neste sentido, tem amplo êxito junto de um público sempre exigente como é o nosso.

*com Álcio Lopes Mota.