8.7.03

O FIM DE UM MITO

Pelo Conselheiro Augusto Justo


Uma das propriedades da ciência da História é o desvelar de um certo tipo de fenomenologia que até então se cria atribuida a fenómenos de origem sobrenatural, divina e/ou (lê-se Ibarra Ou) metafísica. Assim foi com Alexandre Herculano e a substituição de Nossa Senhora pela porrada massiva de Afonso Henriques, como causa decisiva da vitória dos Tugas na batalha de Ourique, a título meramente exemplificativo. Sendo a História feita de factos e da sua interpretação, é caso para dizer, com Fernand Braudel - um registra destas andanças - que "o homem é produto do seu tempo" (dele, homem) e que os ditos cujos factos se encarregam de fazer tombar figuras, regimes, mitos e treinadores de futebol. Tenha-se como exemplo o mito criado por Sousa Cintra, quando apresentou Careca à comunicação social no dealbar da década de noventa: "este vai sêre o nov'Eusébie, e vai triunfare no Sporteng". Uma época menos conseguida e o novo Eusébio deixava a sua magia no Famalicão. Quer-se com isto chegar à mais chocante notícia que abalou o panorama futebolístico neste início de época. ARTUR JORGE RAPOU O BIGODE. Com efeito, o treinador da Académica eliminou da sua face uma penugem que fez história no modo de ser treinador em Portugal e, porque não dizê-lo, na Europa. Sim, por via de regra, qualquer treinador que quisesse ganhar alguma personalidade, tinha um bigode a puxar à Artur Jorge (cfr. o adjunto do Rei Artur no PSG que tinha um bigode mais à Artur Jorge que o próprio, cfr as penugens de José Romão, de Manuel Correia, de Toni, de José Rachão, de Vítor Urbano e do próprio Agatão). Caiu, portanto, a bigodaça mais mítica deste cantinho à beira mar plantado, bigodaça essa talvez só comparável à do não menos emblemático jogador do Desportivo de Chaves e Sporting de Braga, António Borges. E com este gesto cai também um mito na medida em que se apaga ou pretende apagar da memória colectiva dos amantes da décima arte a imagem de um treinador ganhador. O A.J. campeão europeu, português e de França será sempre o A.J. de bigode forte, farfalhudo e arqueado no sentido nariz-boca. O A.J. dos aflitos, do "aguenta-te Briosa" será uma figura estilisticamente diferente dessa: mais despida, mais exposta, mais rapada, menos triunfal. Aliás, pode afirmar-se com propriedade que existe um nexo de causalidade entre os Grandes Êxitos e Triunfos do Futebol Português (salvo a mais recente conquista do Futebol Clube do Porto) e a existência de bigodes dos seus timoneiros. Senão, vejamos: Inglaterra 66, o bigode de Otto Glória; França 84 o bigode do Chalana (valeu por todos e a selecção tinha quatro treinadores); Estugarda 85 e o mítico bigode de Carlão, a Locomotiva do Barreiro e México 86 com o bigode de sonho do Torres; Porto campeão europeu e o bigode agora desaparecido; Arábia 89 e Portugal 91, o bigode Shaolin do Professor Queirós; Euro 96 e o bigode do António Oliveira; Euro 2000 e o bigode de Humberto Coelho (que o cortou no início da prova; porém, a fase de qualificação foi feita de bigode); Japão/Coreia 2002 e o bis do bigode de Oliveira; Uefa 2002, sob o estigma do bigode de Reinaldo Teles, um irredutível bigodês. Mas deste nexo bigodal na selecção nacional e não só, falarei em lugar próprio...
Regressando ao fim do mito em análise, pessoalmente, sou forçado a confessar sem reservas: sempre pensei que, por baixo do bigode de Artur Jorge se encontrasse o nada, o vácuo, o vazio, a explicação de muitas das nossas dúvidas cósmicas. Mas não. Existe uma cara bem humana como a nossa e a do leitor. Apenas compreendo este gesto ao abrigo de uma frase do próprio autor de medonha mutilação: "temos de fazer coisas bonitas", deixando de lado a subjectividade inerente ao conceito de "bonito". Sempre pensei igualmente que Artur Jorge nunca, jamais e em tempo algum raparia o bigode, como penso, convictamente, que Agostinho Oliveira (outro de bigode) jamais terá queda de cabelo, como creio que o Baggio não se irá desfazer daquele rabo de cavalo. Quando vi o rei Artur sem bigode, pensei nos gloriosos tempos da Taça dos Campeões Europeus e do sprint que A.J. fazia atrás do João Pinto para tocar no caneco, lembrei o saudoso Matra Racing e a sua galopada infernal com Jorge Plácido e Enzo Francescoli, lembrei os 4-1 apanhados pelo Benfica ante o demolidor Farense de Hajry e Punisic, lembrei os empates com a Arménia e quejandos para o Mundial 98 e o obrigado Monsieur Batta... enfim, (e não escondendo algum embargo na voz que dita estas palavras à minha secretária La Salette) lembrei-me sempre mais do bigode que do próprio corpo que o prendia.
Com este gesto - de uma coragem ao alcance de muito poucos (talvez apenas de Paulo Madeira, quando se desfez dos seus longos e neandertálicos cabelos), desaparece um pouco de nós e da nossa relação com o futebol português dos anos oitenta e noventa. Estou para ver e medir as consequências deste gesto, consequências que adivinho profundas ao nível estrutural do nosso futebol português.